Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Não blasfemarás!

Lula é fiel aos interesses de Havana, que protege tiranos aliados

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"Metaforicamente falando, a Nicarágua parece uma igrejinha distante onde há um sacerdote que comete excessos e que todos reprovam. A Venezuela lembra uma arquidiocese de média importância cujo funcionamento é digno de certas críticas. Cuba... é o Vaticano, cuja santidade e dogma são inquestionáveis."

A descrição das atitudes da esquerda latino-americana, publicada no site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos, é do cientista político cubano Armando Chaguaceda. Ela ajuda a entender tanto o tardio distanciamento do governo Lula em relação à ditadura de Ortega quanto sua natureza incompleta.

Lula em solenidade no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira-28.fev.23/Folhapress

Ortega, o sacerdote da paróquia, renunciou há tempos ao "socialismo". Seu regime manteve laços íntimos com o FMI, cerca-se de um cortejo de empresários espertos e o próprio ditador aliou-se à Capitol Ministries, organização político-evangélica americana que entrou no Brasil pela mão de Bolsonaro. O PSOL desistiu do regime nicaraguense –mas, claro, continua a rezar no altar do Vaticano tropical. Já o PT opera em outro compasso, recusando-se a romper com o tirano nicaraguense.

Ortega não conhece limites. Sua investida mais recente, a cassação da nacionalidade de mais de 300 opositores, inclusive vários antigos camaradas de armas da Revolução Nicaraguense, constitui infração direta da Declaração de 1948, que proíbe converter cidadãos em apátridas. O ato extremo provocou uma onda de indignação, expressa no documento de 54 países que pede "pressão máxima" sobre o regime. O chileno Boric ofereceu cidadania aos opositores nicaraguenses, um gesto imitado pelo argentino Fernández e pelo colombiano Petro.

Há diferenças relevantes. Boric personifica uma esquerda que aprendeu o valor da democracia: ele utiliza a palavra ditadura até mesmo para definir o Vaticano castrista. Já Fernández e Petro modulam suas sentenças de acordo com a hierarquia teológica da esquerda. Para eles, Cuba é exceção absoluta: a coagulação terrena de um ideal mítico. Por isso, a ruptura de ambos com Ortega não implica um repúdio geral do autoritarismo de esquerda.

São duas lógicas distintas. Boric mantém coerência com o princípio de que ditaduras de direita ou esquerda são igualmente repulsivas. Fernández e Petro guiam-se por outro princípio: a adesão ao "socialismo", entendido como controle estatal da economia e ferrenho antiamericanismo. As ditaduras de esquerda fiéis ao dogma figuram como parceiros numa jornada histórica –e, portanto, permanecem imunes à crítica. Democracia, sob tal ótica, é bem menos valioso que ideologia.

Em tese, o PT se enquadraria nesta segunda lógica. Dias atrás, o dirigente petista Alberto Cantalice qualificou Ortega, Maduro e Díaz-Canel como ditadores, levou um pito dos burocratas partidários e ajoelhou no milho, desculpando-se pela sacrílega inclusão de Cuba na sentença condenatória. Lula, entretanto, vacila até mesmo sobre o infame sacerdote de aldeia.

"Bolsonaro é mil vezes pior que Ortega", pontificou Lula na campanha eleitoral, fabricando uma comparação insensata entre um tirano que comanda uma ditadura sanguinária e um presidente autoritário sitiado pelas instituições democráticas. Agora, o Brasil rejeitou o texto preciso dos 54 países e, no lugar da oferta de cidadania imediata aos opositores, declarou-se meramente disposto a recebê-los como refugiados apátridas. Pior: no Conselho de Direitos Humanos da ONU, tenta articular uma resolução desdentada, a fim de evitar a condenação da barbárie estatal nicaraguense.

Lula obedece a uma terceira lógica: a fidelidade pragmática aos interesses fundamentais de Havana. Como Cuba protege os tiranos aliados em qualquer circunstância, o Itamaraty busca caminhos "construtivos" para impedir o isolamento de Ortega. Divergir da "linha justa" do Vaticano é, afinal, blasfêmia imperdoável.

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