Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu África

Cleópatra, guerras de cor

Egiptologistas acusam minissérie de tentar 'apagar a identidade egípcia'

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A protagonista da nova minissérie da Netflix, interpretada por Adele James, é a primeira Cleópatra negra da história do cinema, o que provocou reações indignadas do governo egípcio. Foi Adis Abeba, capital da Etiópia, a cidade escolhida para fundar a Organização de Unidade Africana (OUA), há 60 anos, em 25 de maio de 1963. Os dois eventos estão conectados por uma ponte ideológica que ilumina o discurso político da corrente principal do movimento negro.

Na fundação da OUA, os líderes dos novos países independentes renunciaram ao ideal do pan-africanismo: os Estados Unidos da África. Ao longo de décadas, nos diversos congressos pan-africanos realizados na Europa e nos EUA, prometeu-se a unidade estatal de toda a África. Assim como Bolívar imaginara uma Pátria Grande hispano-americana, o pan-africanismo sonhou com uma "Pátria Grande racial". Contudo, na hora decisiva, os dirigentes africanos preferiram a fragmentação nacional nas linhas desenhadas pelas potências europeias.

Cena de 'Rainha Cleópatra', filme da Netflix
Cena de 'Rainha Cleópatra', filme da Netflix - Divulgação

A OUA sacramentou as fronteiras coloniais, assegurando o poder das elites políticas emanadas das independências. Mas os ornamentos exteriores da Pátria Única precisavam ser conservados, em nome da legitimidade histórica dos novos dirigentes estatais. Por isso, a palavra "unidade" batizou a organização que a renegava –e, pelo mesmo motivo, escolheu-se Adis Abeba.

A Etiópia persistiu como império independente durante a expansão imperial europeia na África. A ideia de "império" adaptava-se ao discurso sobre uma unidade africana despida de influências exteriores adotado pelos novos dirigentes estatais. Menelik 2º, imperador etíope entre 1889 e 1913, escravizou em larga escala os Oromo subjugados no sul do país. Hailé Selassié, seu sucessor entre 1916 e 1974, foi um monarca cristão ortodoxo festejado pela aristocracia europeia. Império, escravismo, cristianismo? A "africanidade" ajoelhava-se diante da tradição europeia em dissolução.

Cleópatra negra? Os egiptologistas oficiais acusam a minissérie de tentar "apagar a identidade egípcia": a rainha, de linhagem oriunda da Macedônia, seria "grega" e "de pele clara". As nações são "comunidades imaginadas" pelo nacionalismo –e o nacionalismo autoritário egípcio reivindica uma legitimidade ancorada na Grécia Antiga e refinada pela civilização árabe. Por isso, o Estado egípcio rejeita o projeto ideológico de "africanização" do Egito.

Qual era a cor da pele de Cleópatra? O debate, inspirado pelo "racismo científico", é um anacronismo: no Egito Antigo, pouco importava a cor da pele. A pergunta não tem resposta. Mais de dois séculos separam a rainha de seus ancestrais macedônios e o império egípcio estendeu-se pelo Sudão. Investigações imprecisas levantam a hipótese de que a princesa Arsinoe, meia-irmã e rival de Cleópatra, tivesse feições negro-africanas.

Thina Garavi, diretora da minissérie, não aposta na negritude da rainha, mas na potência ideológica da proposta: "Por que algumas pessoas necessitam uma Cleópatra branca?". A pergunta faz sentido –mas a indagação simétrica também. Por que o identitarismo racial necessita uma Cleópatra negra? O empreendimento de "africanização" do Egito Antigo espraiou-se pelo movimento negro. Seguindo uma regra da política identitária racial, trata-se de conduzir guerras simbólicas contra o imperialismo e a "branquitude ocidental".

Só que, como no caso da escolha de Adis Abeba, o modelo almejado é um reflexo especular do cânone europeu do século 19. O Egito Antigo era um império centralizado cuja força produtiva baseava-se em massas de trabalhadores submetidos à servidão ou escravizados.

"Eu estou pedindo aos egípcios que se enxerguem como africanos", explica Garavi. Ok –mas a solicitação implica pedir ao movimento negro que aceite o imperialismo e a escravidão como partes da tradição africana.

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