Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu USP

No jogo da raça

Políticas de cotas raciais espalham o gás tóxico do racismo no meio do povo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cerca de dez anos atrás, um candidato ao ensino superior que teve sua autodeclaração racial negada por um tribunal racial ("comissão de heteroidentificação", segundo a novilíngua da burocracia identitária) solicitou meu auxílio para reverter a sentença. Neste ano, 204 candidatos à USP recorrem contra negativas similares, inclusive o pardo Alison Rodrigues, que perdeu a vaga em medicina e ingressou com ação judicial.

Nenhum deles fez contato comigo, mas atualizo a resposta pessoal que ofereci no passado. Talvez ela interesse a dezenas de milhares de jovens, Brasil afora:

Prezado candidato, não posso ajudá-lo. Você entrou num jogo com regras subjetivas, arbitrárias. É impossível comprovar objetivamente sua raça, pois raças humanas não existem.

Praça do Relógio, na USP (Universidade de São Paulo), localizada na Cidade Universitária, na zona oeste da capital paulista
Praça do Relógio, na USP (Universidade de São Paulo), localizada na Cidade Universitária, na zona oeste da capital paulista - Adriano Vizoni - 26.mar.21/Folhapress

Políticas de preferências raciais exigem uma nítida definição da raça de cada indivíduo. Nos EUA, as leis de segregação racial do início do século 20 solucionaram o "problema": negro é quem tem uma "gota de sangue" negro. No Brasil, graças à ausência histórica de leis semelhantes, reconheceu-se a mistura: miscigenação biológica e mestiçagem cultural. Por isso, quando se introduziram as (mal) chamadas ações afirmativas raciais, tornou-se necessário criar tribunais raciais: bancas que decidem visualmente quem é "branco" e quem é "negro" ou "indígena".

Os autodeclarados pardos formam 45% da população. Nas estatísticas oficiais, junto com os autodeclarados pretos, compõem a categoria "negros". Com base nessa falsificação estatal, os identitários proclamam que os "negros" somam 55% da população. A alegação só vale na esfera da propaganda: na hora H, plim plim!, os tribunais raciais transformam os pardos em "brancos". Eles serão "brancos" para efeito de cotas, mas "negros" para finalidades discursivas.

O movimento identitário argumentou, originalmente, que as cotas raciais contribuiriam para a redução do racismo. Hoje, 20 anos depois, segundo eles, o racismo é mais intenso do que nunca. Daí, não concluem que o "remédio" fracassou, mas que é preciso dobrar a dose, torná-lo permanente e, sobretudo, difundi-lo para além das universidades. Atualmente, o interesse verdadeiro dos ativistas identitários é implantar cotas no Judiciário, no Legislativo e no aparato da administração pública. Ou seja: abrir atalhos para suas próprias carreiras profissionais.

A elite política concorda, da extrema esquerda à extrema direita, com as políticas de cotas raciais no ensino superior. É que as preferências raciais cumprem a função crucial de mascarar a paisagem cronicamente desastrosa de nosso sistema público de educação básica. As crianças e jovens pobres não têm direito a uma escola decente –mas, em troca, as universidades concedem vagas segundo critérios raciais aos que tiveram a sorte de cursar escolas públicas melhores. Pão e circo.

Você, candidato excluído, é irrelevante para a política identitária. Os tribunais raciais são constituídos por militantes do movimento identitário. Por definição, atribuem marcadores de raça de acordo com suas impressões, sob a justificativa metafísica de que refletem o "olhar da sociedade". Na melhor das hipóteses, você será visto como inevitável dano colateral no caminho que conduz à redenção. Na pior, como um perjuro: um falseador de sua raça.

As políticas de "cotas sociais" –isto é, a reserva de vagas para alunos de escolas públicas– não devem ser condenadas. Idealmente, seriam emplastros provisórios utilizados enquanto o Estado promove uma reforma radical no ensino público. Contudo, o sistema de cotas raciais separa, pelo critério da cor da pele, estudantes que cursaram as mesmas escolas públicas, residem nos mesmos bairros e provêm do mesmo estrato social. Aí encontra-se o efeito mais perverso e duradouro dessas políticas: elas espalham o gás tóxico do racismo no meio do povo.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.