Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Governo Lula

Tragédia sem fim

Se Lula 3 não romper tabu econômico presidencial, será sucedido por bolsonarismo 2.0

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"É melhor um fim trágico que uma tragédia sem fim", decretou Jaques Wagner diante da devolução da MP do PIS/Cofins pelo presidente do Senado. Ao que parece, Lula aplaudiu o gesto de Rodrigo Pacheco, ralhando com seu círculo mais próximo por um erro político crasso cometido com seu aval. O evento rocambolesco assinala o encerramento da primeira etapa de Lula 3. Começa, agora, Lula 3.2.

Não foi um equívoco circunstancial, mas o fruto de uma estratégia geral. Lula vive no passado: o mundo do dinheiro farto de seus mandatos anteriores. Ancorado nas suas memórias e hipnotizado pela crença arrogante de que sua genialidade pariu aquele mundo, o candidato Lula pregou a restauração da política econômica exercitada numa era de ilusões. A dura prova da realidade tardou meros 18 meses.

Haddad e Lula estão lado a lado em um ambiente formal. Haddad veste um terno escuro com gravata listrada, olhando para baixo com uma expressão séria. Lula, com barba branca e bigode, também veste um terno e olha para o mesmo ponto que o outro, exibindo uma expressão pensativa.
O presidente Lula (PT) com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), em evento no Palácio do Planalto, em Brasília - Gabriela Biló - 26.set.23/Folhapress

Na campanha, o candidato entregou-se à quadratura do círculo. De um lado, praticando a sabedoria, firmou uma aliança com o centro político, expressa na cooptação de Alckmin, Tebet e Marina Silva. De outro, praticando uma teimosia que reflete suas convicções profundas, prometeu repetir a orientação econômica sintetizada por Dilma Rousseff pelo refrão "gasto é vida". Não funcionou: o presidente perdeu a confiança dos eleitores de centro, mesmo conservando, como enfeites natalinos, os três representantes desse setor do eleitorado.

Mas, sobretudo, a nau encheu-se de água nos porões da economia. O "gasto é vida" foi adotado tanto pelo Executivo quanto por um Congresso com poderes típicos do parlamentarismo mas sem as responsabilidades correspondentes. O ministro Haddad, um santo com vaga garantida no paraíso, tentou o impossível para conciliar os impulsos de gastança com a meta elusiva do equilíbrio fiscal. Seu dom de iludir chegou ao limite, algo que ele mesmo admitiu ao declarar, resignado, após a devolução da MP, não dispor de Plano B para compensar as perdas arrecadatórias.

"Gasto é vida" só sobrevive em céu sem nuvens. A conjuntura internacional marcada pelo desmoronamento da ordem do pós-Guerra Fria não entrou no cálculo lulista. A trajetória inclemente dos juros nos EUA e o desastre climático no RS, com suas implicações inflacionárias, formaram uma sucessão de cumulonimbus no horizonte. Os truques de prestidigitação fiscal do Ministério da Fazenda já não conseguem ocultar a curva de longo prazo. Não sem motivos, o Copom suspendeu as rodadas de corte da taxa Selic.

Qualquer governo eleito pelo povo beneficia-se de um período de graça. O arcabouço fiscal do ministro santificado, junto com a ortodoxia monetária do BC, propiciou uma lua de mel entre o governo e os agentes econômicos. O afeto, porém, encerrou-se. Como de hábito, os economistas heterodoxos, Gleisi Hoffmann e o "gabinete do ódio" petista culparão os suspeitos de sempre, agravando a crise de comunicação do governo. Não se superam impasses políticos de fundo por meio de retórica balofa.

Há tênues sinais de vida inteligente oriundos da Fazenda e do Planejamento. Haddad anunciou uma revisão "ampla, geral e irrestrita" das despesas públicas. Falta combinar com Lula e com o centrão. A noção de que o gasto estatal impulsiona o consumo e, por essa via, provoca crescimento econômico figura na mente presidencial, como tabu. O centrão, por sua vez, não cultiva tabus, mas apenas seus interesses imediatos –e, precisamente por isso, associou-se ao manual lulista de teoria econômica.

Lula 3 foi inaugurado à sombra gloriosa do fracasso do golpismo bolsonarista. "Nós" contra "eles": o antibolsonarismo sedimentou-se como ferramenta propagandística crucial do lulismo. Entretanto, por sua própria natureza, a polarização funciona melhor para a oposição que para o governo. Se Lula 3.2 revelar-se incapaz de romper o tabu econômico presidencial, será sucedido por um bolsonarismo 2.0. Ou seja, pela proverbial "tragédia sem fim".

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