Denise Mota

Jornalista especializada em diversidade, escreve sobre quem vive às margens nada plácidas do Ipiranga, da América Latina e de outras paragens

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'Quilombo', a resistência que significa 'confusão' no Rio da Prata

Organizações civis da região buscam resgatar o sentido original da palavra de origem banto

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De tão naturalizado, pode passar batido pelo brasileiro a passeio na Argentina ou no Uruguai. Mas, no dia a dia, o uso da palavra "quilombo" com o significado de "confusão, desordem, tumulto" chama a atenção e joga luz sobre como o passado escravocrata continua a deixar marcas racistas óbvias na linguagem.

"Quilombo" significa ainda "prostíbulo", "bordel", "lupanar", não só nos países do Rio da Prata mas também na Bolívia, no Chile e no Paraguai, um exemplo bem-sucedido de integração regional no Mercosul ampliado.

Esses usos estão registrados no dicionário da Real Academia Española, instituição fundada em Madri em 1713 e que mantém a função de "preservar o bem mais importante do nosso patrimônio cultural, que é a língua que compartilhamos com quase 600 milhões de pessoas no mundo", como se lê em sua página oficial.

"‘Kilombo’ é um termo de língua banto, da região Congo-Angola", explica à Folha Kabengele Munanga, graduado pela Universidade de Lubumbashi, na República Democrática do Congo, e doutor em antropologia pela Universidade de São Paulo. "Originalmente se referia a um campo de iniciação em ritos de circuncisão. Com o tempo, no século 16 e a partir dos muitos conflitos na região, o conceito muda quando grupos étnicos, para fugir de ataques, buscam lugares de difícil acesso, lugares de resistência", ensina.

O sociólogo Carlos Alvarez Nazareno, fundador da associação civil argentina Agrupación Xangô, pontua que o termo "ganhou significado pejorativo como outro modo de manifestação do racismo estrutural".

"Aí também vemos o impacto do racismo na linguagem, por parte do colonizador, ao não reconhecer o significado de resistência cultural e organizativa da palavra. Não se quis mostrar algo positivo", afirma Nazareno, criador da associação civil que tem por objetivo combater a discriminação racial e de gênero. "Aqui na Argentina, ‘quilombo’ está super instalado na cultura local. No Uruguai também, vinculado ainda à prostituição. E, em Buenos Aires, mais relacionado com desordem, barulho."

No Brasil, "quilombo" é utilizado em consonância com seu sentido original, africano, que foi aquele empregado também pelas populações escravizadas no país: o de um espaço onde se buscava viver e construir uma nova sociedade em liberdade.

O significado de resistência norteia expressões e conceitos brasileiros amplamente empregados, como "quilombismo" —desenvolvido por Abdias do Nascimento— ou "aquilombar-se", recorda Munanga. O professor ainda explica que, no século 16, os jovens capturados em conflitos se tornavam guerreiros nos quilombos, o que transformou esses espaços em "comunidades trans étnicas" na África. "E assim o termo chegou ao Brasil, quando africanos escravizados se rebelaram, fugindo em busca de territórios para resistir", completa.

No Rio da Prata, Nazareno conta que o resgate desse significado é parte do trabalho de organizações como a Xangô. "Creio que é importante destacar as estratégias que os movimentos antirracistas e decoloniais estamos empregando em relação a essa luta, que reivindicamos, do sentido positivo das palavras relacionadas à negritude. Também do ponto de vista educativo, que se fale mais da cultura africana e de aspectos vinculados ao racismo, um trabalho que estamos desenvolvendo junto a educadores do Brasil, da Colômbia e também aqui, na Argentina e no Uruguai."

"Essas comunidades existiram em várias regiões do continente americano, com nomes diferentes. Até nos Estados Unidos. Eram estratégicas", descreve Munanga. "O Haiti era um território de grandes quilombos, por exemplo. Não era lugar de bagunça nem de confusão."

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