Não existe solução real para a crise da Covid-19 que não passe pela igualdade no acesso à prevenção e ao tratamento da doença. Mas, a cada nova tecnologia que surge para combater o vírus, se aprofunda o abismo da desigualdade. Este foi o caso com as máscaras e ventiladores, depois com os diagnósticos e cilindros de oxigênio. Agora, com as vacinas e tratamentos. Essas crises de acesso seguem o mesmo roteiro: poucas empresas controlam a produção e a circulação de produtos essenciais para a sobrevivência de populações inteiras e dão preferência para acordos com países ricos, dispostos a pagar mais caro por eles. Para o resto do mundo, ficam a escassez, o desespero e o sofrimento.
Não existe mistério sobre a fórmula para interromper essa tragédia. São necessários três ingredientes apenas: solidariedade, ética e coragem política.
Solidariedade vai muito além de doações e outros gestos filantrópicos que, embora tragam algum alívio de curto prazo, não alteram as estruturas que sustentam a desigualdade. Trata-se de resgatar um sentido comum de humanidade e dar a todos as mesmas oportunidades. O fato de mais de 80% das vacinas produzidas estarem sendo usadas nos países mais ricos e menos de 1% delas nos mais pobres evidencia o quão distante estamos da solidariedade.
Ética é tomar decisões com base em princípios morais sólidos. É o que se esperava dos líderes da indústria farmacêutica, no sentido de evitarem a repetição de erros do passado, em que o patenteamento excessivo e descabido de tecnologias de saúde gerou uma sequência de tragédias humanitárias em HIV/Aids, hepatite, tuberculose, pneumonia.
Ética também tem a ver com transparência. No caso da indústria, isso significaria reconhecer que as vacinas e tratamentos desenvolvidos foram fruto de pesquisas e investimentos públicos; e que, portanto, não é proprietária dos conhecimentos sobre a produção desses bens de saúde. Compartilhar esses conhecimentos de forma ampla e aberta com outros produtores seria a solução ética ideal para acabar com o jogo da escassez e das suas consequências fatais. E, que fique claro, isso não abalaria a saúde financeira das grandes farmacêuticas nem colocaria em risco o futuro da inovação.
Sem dúvida, hoje a fórmula das vacinas é um pote de ouro para a indústria farmacêutica. Mas, no fundo, quem mais está lucrando é o vírus, que se multiplica e forma suas variantes mais perigosas conforme cresce o silêncio das grandes empresas do setor diante dos apelos pelo compartilhamento do conhecimento capaz de salvar vidas e conter a evolução da pandemia.
Por isso, a coragem política talvez seja o ingrediente mais importante da fórmula, pois pode concretizar a solidariedade e a ética onde elas estão em falta.
O parlamento brasileiro demonstrou estar à altura do desafio ao aprovar com ampla maioria nas duas Casas legislativas o PL 12/2021, agora convertido na Lei das Licenças, a 14.200/2021. Esse projeto reforça e otimiza o licenciamento compulsório, uma medida de saúde pública voltada para corrigir distorções de mercado que porventura estejam prejudicando o enfrentamento de uma doença.
Com o licenciamento compulsório, mesmo que uma tecnologia esteja patenteada e, portanto, só possa ser vendida por uma única empresa, o governo fica autorizado a comprá-la de outros fornecedores. A lógica é: quanto mais opções de compra, mais garantia de acesso para a população. Cabe lembrar que a empresa titular da patente continua atuando no mercado e, ainda, recebe compensações na medida em que os concorrentes começam a utilizar sua invenção.
No entanto, para lidar com um cenário de emergência de saúde, agravado por protecionismos nacionais e industriais, era preciso ir além. A nova lei trouxe então um modelo de licença compulsória com aplicação ampla, incluindo várias tecnologias ao mesmo tempo, e com escopo mais preciso, incluindo pedidos de patente. A Lei 14.200/2021 também prevê a participação cidadã no processo e a responsabilidade das empresas de compartilhar conhecimentos e estabelece prazos claros para atuação do poder executivo.
Porém, ao sancionar a lei, a Presidência da República estabeleceu vetos que desmontaram a proposta original, eliminando a responsabilidade das empresas de agir de forma ética em relação ao compartilhamento do conhecimento e eliminando a clareza dos prazos que o Executivo deve cumprir para usar esta medida no contexto da Covid-19.
Os vetos constituem um passaporte para a omissão e um atentado contra a solidariedade para com tantas famílias que diariamente sofrem com a falta de acesso a tratamentos nas UTIs de hospitais públicos, onde a mortalidade é de 53,1% para internados com Covid-19, em contraste com 30,9% na rede privada, onde um medicamento de alto custo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) está acessível, mas só para quem tem condições de pagar.
É urgente que os parlamentares derrubem esses vetos e recuperem a proposta original. Já está prevista uma sessão do Congresso Nacional para a próxima segunda (27), quando Câmara e Senado poderão decidir o futuro do acesso a medicamentos, vacinas e diagnósticos para Covid-19 no Brasil. Nessa data, saberemos se a sociedade brasileira continuará refém da vontade das grandes empresas e de uma dinâmica comercial que não prioriza a saúde global ou se, finalmente, verá um ato de coragem política capaz de reestabelecer a solidariedade e a ética onde estão atualmente faltando.
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