Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

A boca não vence a guerra

Gritar revolução sem analisar a própria realidade concreta é atitude vazia

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Nessa arena de batalha que vivemos, por mais que existam pessoas se dizendo revolucionárias, serão as suas atitudes que de fato dirão. Se vejo movimentos e plateias sem o mínimo de diversidade, me questiono até que ponto algo pode ser transformador se somente contempla um grupo. 

Alguém que não se põe em confronto com diferentes visões de mundo acaba tendo uma visão empobrecida da realidade. Ou pior, acaba presumindo que só pessoas como ele é que têm legitimidade para falar ou produzir saber.

Fora isso, penso que esse questionar das atitudes passa fundamentalmente pelo modo como tratamos as outras pessoas. Como feminista negra, sou alvo de muitos ataques —a violência, infelizmente, é algo que faz parte da vida de mulheres negras. Porém, quando essa violência vem de pessoas que se dizem revolucionárias, penso qual ser o propósito. 

“Você não segue os mesmos autores que eu. Você criticou meu autor favorito.” Crítica não é deslegitimação, por mais que muitas vezes mesmo quem se diz acadêmico não saiba a diferença. Crítica
pode ser apontar limites em uma análise, pode ser a própria noção kantiana de crítica.

Três moças negras, sem rosto sentadas num sofá. A do meio usa turbante e está com um livro no colo lendo
Linoca Souza/Folhapress

Como descreveu brilhantemente a intelectual feminista negra Carla Akotirene, autora de “Interseccionalidade” (Pólen, 2018), você é escravo intelectual de qual corrente? Seguir de maneira cega e ortodoxa uma corrente filosófica é mais importante do que respeitar quem não a segue? 

Akotirene, em uma rede social, desabafou sobre perseguições que estaria sofrendo por ter feito uma crítica a um determinado autor. Por causa disso, pessoas que se dizem seguidoras desse autor começaram a ir em sites de livrarias online para dar “dislike” na avaliação de seu livro. 

E eu pergunto: o que há de revolucionário em atacar uma obra de um projeto independente,
de uma autora que sistematiza um conceito pensado para analisar opressões entrecruzadas de grupos?

Essas pessoas nem sequer sabem o que interseccionalidade significa, não leram, não respeitam a produção intelectual de feministas negras. O que desejam é aniquilar, ofender, atacar uma mulher negra em vez de fazer o debate no campo das ideias. 

Estamos falando de uma autora cuja dissertação foi sobre mulheres negras no sistema de Justiça, fazendo uma análise pela perspectiva de raça, classe e gênero. Uma doutoranda, assistente social em 
Salvador, que todos os dias atende justamente essas pessoas que estuda, não é uma pessoa reacionária, mas uma feminista negra comprometida com a real transformação. 

Com governadores atirando de helicópteros, com o aumento do assassinato de jovens negros, cortes de direitos fundamentais, aumento de feminicídio, essas pessoas escolhem atacar uma intelectual por causa de divergência teórica? É o cúmulo do antirrevolucionário. O que essas pessoas pretendem é manter hegemonia de narrativa, e não a emancipação. 

Estudei o pensamento de Simone de Beauvoir no mestrado e, a partir de Audre Lorde e Grada Kilomba, critico a análise de Beauvoir sobre a categoria do outro. Isso não me faz anti-Beauvoir —inclusive adoro e sigo estudando. Isso me faz ser uma pessoa que valoriza o pensamento crítico e a dialética. 

Voltando a Kant, ele afirmava que coragem não é um atributo moral, já que um idiota pode ser corajoso.

Quem ataca dessa forma pensa-se corajoso, mas só está contribuindo para a morte do pensamento crítico e, mais, de sua própria humanidade, pois só sente relevante atacando, querendo destruir. 

O interessante disso tudo é que a tática de quem foi dar “dislike” trouxe o efeito contrário. O livro é o mais vendido em uma das maiores livrarias virtuais. Talvez, as pessoas estejam começando a perceber que deboche e ataque, nesse contexto, não sejam atitudes sérias —e mais mostram o caráter de quem as comete e quem as apoia. 

Audre Lorde, uma vez, disse: “Revolução não é um evento único. É nos fazer ser vigilantes e aproveitar a menor oportunidade para realizarmos uma mudança genuína frente o poder estabelecido. Também é perceber como estamos aprendendo a lidar com a diferença do outro com respeito”. 

Gritar revolução aos quatro cantos sem analisar a própria realidade concreta, as condições estruturais que determinaram seu lugar social, servindo de capataz da branquitude patriarcal, criando espantalhos argumentativos, são só palavras vazias. Já nos ensinou Toni Cade Bambara: “A revolução começa comigo, no interior. É melhor reservarmos tempo para tornar nossos interiores revolucionários, nossas vidas revolucionarias. A boca não vence a guerra”.

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