Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Descrição de chapéu

Uma grata novidade

'Irmã Outsider', de Audre Lorde, é uma leitura que nos ensina e nos instiga à ação

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Uma grata novidade acalentou meu coração nos últimos tempos: “Irmã Outsider”, de Audre Lorde, foi recentemente publicado no Brasil pela editora Autêntica e com tradução de Stephanie Borges. Tenho a honra de assinar a quarta capa.

É uma reunião de artigos da feminista negra americana que se fixou como professora nos bancos das universidades alemãs. Mulher, negra, lésbica, a escritora é entrecruzada por uma série de identidades que a posicionam como forasteira dentro de movimentos contra opressões estruturais, conferindo um lugar único de análise, potencializado pela sua escrita, que nos move a organizar a raiva ante as violências estruturais e canalizá-las para a transformação da sociedade.

Publicados entre as décadas de 1970 e 1980, são artigos, cada qual visto em separado, potentes, profundos, merecedores de textos, aulas e discussões em aberto. Vistos em conjunto, são uma antologia transformadora, que eleva o nível do debate e da humanidade nos mais variados segmentos do pensamento.

Ilustração de uma moça negra, usando blusa verde-água, cabelo branco, abrindo uma gaveta de arquivos, com vários papeis saindo.
Linoca Souza

No Brasil, feministas negras bebem dessa fonte há muitos anos, começando com uma tradução amadora ali, uma publicação esparsa em outro site, ou em algum livro restrito a pessoas mais engajadas na árdua tarefa que é o contato com produção de mulheres da diáspora. A expansão do universo Audre Lorde vem muito bem a calhar nos dias de hoje, sobretudo pela atualidade e provocação de seus escritos.

Os leitores e leitoras desta Folha vão se lembrar que tiveram a oportunidade de ter contato com as reflexões sobre os textos de Lorde reunidos na obra quando, por exemplo, escrevi nesta coluna sobre o “Erótico como Poder”, título de um de seus artigos.

Nesse texto, belo e corajoso, Lorde nos brinda com reflexões sobre erotismo. “O erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. E uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos então observar qual de nossos afãs vitais nos coloca mais perto dessa plenitude.”

É uma ideia muito distante do que poderia ser entendido pela influência da indústria pornográfica bilionária, mas invisível, que, como uma névoa turva a mente de garotos, jovens e marmanjos, já tão formatada pelas opressões estruturais, contribuindo a produzir um exército de homens que não sabem lidar com uma mulher, vindo muitas vezes a traumatizá-las em suas primeiras, segundas, terceiras e tantas outras experiências sexuais.

Elas são inseridas na mimetização de algum filme precário, onde seu papel é ser um mero objeto a serviço do consumidor, resultado de uma diária masturbação pretensamente descompromissada que acaba a produzir violência na vida de mulheres.

Também vão se lembrar quando escrevi a coluna “Eu me arrependo dos meus silêncios”. Para mulheres negras, o incentivo externo ao silêncio é constante, numa reatualização da máscara do silêncio da escrava Anastacia. Somos “as criadoras de caso”, como definiu bem Lélia Gonzalez, e o que temos a dizer não é para embalar os sonhos da casa grande, mas sim para “acordá-los de seus sonos injustos”, como afirma Conceição Evaristo.

Naquele texto, lendo o que a poeta americana escreveu, pude refletir sobre como falar é um ato de libertação para mulheres negras. Lorde escreveu o artigo “A transformação do silêncio em linguagem e ação” após ter convivido, por três semanas, com a angústia de um diagnóstico de um tumor maligno nos seios. O diagnóstico não se confirmou e ela viveu quinze anos mais depois desse texto, mas a tensão a colocou em perspectiva, sobretudo ao que ela não disse.

“Ao tomar uma obrigatória e fundamental consciência da minha mortalidade, e do que eu desejava e queria para a minha vida, por mais curta que ela pudesse ser, prioridades e omissões ganharam relevância sob uma luz impiedosa, e o que mais me trouxe arrependimento foram os meus silêncios. Do que é que eu tinha medo? Eu temia que questionar ou me manifestar de acordo com as minhas crenças resultasse em dor ou morte. Mas todas somos feridas de tantas maneiras, o tempo todo, e a dor ou se modifica ou passa”, afirma Lorde.

Há tantos outros textos fundamentais na coletânea de Lorde, como “As ferramentas do senhor nunca derrubarão a casa grande”, “Usos da raiva: as mulheres negras reagem ao racismo” e muitos outros. É uma obra fundamental que muito acrescenta nas salas de aulas, em bibliotecas e debates. Uma leitura que nos ensina e nos instiga à ação.

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