Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Zélia Amador, herdeira de Ananse

'Precisamos seguir sendo corpos insurgentes, que incomodam'

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“Minha avó e meu avô me criaram. Negros, nascidos na Ilha do Marajó, onde meu avô trabalhava de vaqueiro, migramos para Belém, eu e minha mãe juntas. Minha mãe, muito nova —quando nasci, ela havia acabado de completar 16 anos—, foi ser empregada doméstica. Eu tinha por volta de um ano e meio. Fui crescendo e aprendendo a ser negra. Quem vem de Marajó não escapa. Se for negro, saberá desde cedo.

Os espaços são separados. A casa grande é a casa dos brancos. O rancho, a casa dos negros. Não há margem para dúvidas.”

Três pessoas negras com os rostos próximos. Uma tem o cabelo azul e veste blusa amarela, a outra tem cabelo castanho e veste roupa verde e a terceira cabelo branco volumoso e blusa marrom
Linoca Souza/Folhapress

O relato acima pertence a Zélia Amador de Deus, uma militante histórica do movimento negro brasileiro, e está descrito precisamente na obra “Ananse Tecendo Teias na Diáspora: Uma Narrativa de Resistência e Luta das Herdeiras e dos Herdeiros de Ananse”, publicado pela Secretaria de Cultura do Pará. 

Com a destreza das aranhas, Zélia teceu durante sua trajetória teias pela ancestralidade do povo afrodiaspórico no Brasil. Cofundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará, o Cedenpa, a diretora, atriz, pesquisadora, ativista, ou seja, pensadora multidisciplinar, foi homenageada na 23ª Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, em setembro deste ano.

Tive a honra de encontrá-la nessa feira  —um dia que guardarei para sempre em meu coração. Ela me disse que a geração dela lutou muito para que a minha pudesse estar na universidade e que ficava feliz em ver a gente incomodando. 

Em dado momento, Zélia lembrou Exu: “Djamila, não se esqueça que Exu é o senhor dos caminhos. Com sua agressividade abriu trilhas pela diáspora. Precisamos seguir sendo corpos insurgentes, que incomodam, abrindo espaços, a gente não pode abaixar a cabeça. Sejamos como Exu”. 

A cosmovisão de matriz africana está enraizada em sua obra, em que o mito africano de Ananse é muito forte. Considerado um mito fundante do povo ashanti, remonta ao começo dos tempos, quando não havia histórias para se contar, pois todas pertenciam a Nyame, o Deus do Céu. Kwaku Ananse, o Homem-Aranha, teceu uma teia de prata do chão ao céu, subiu à morada celestial e perguntou qual era o preço das
 histórias. Deus disse então que Ananse deveria lhe trazer Osebo, o leopardo de dentes terríveis; Mmboro, os marimbondos que picam como fogo; e Moatia, a fada que nenhum homem viu. 

Contrariando as expectativas diante de tão difícil pedido, o pequeno Ananse prontamente partiu e com criatividade cumpriu a missão. Trata-se de uma deliciosa e profunda história contada em detalhes em sua obra. Nyame, ao ver os três pedidos na teia, ficou maravilhado e chamou toda a corte para celebrar em nome de Ananse.

“De hoje em diante, e para sempre, as histórias pertencem a Ananse e serão chamadas de histórias do Homem-Aranha!”, anunciou. O herói desceu ao chão por sua teia de prata, “levando consigo o baú das histórias até o povo de sua aldeia. Quando ele abriu o baú, as histórias se espalharam pelos quatro cantos do mundo, vindo a chegar aqui”, conta Zélia.

As histórias atravessaram povos, os mares, os sequestros transatlânticos de um povo em diáspora e seguem como metáfora para pensar a teia do povo afrodiaspórico com sua ancestralidade, a luta pela sobrevivência, bem como pela construção de novas histórias. “Ananse, mais que uma divindade, simboliza a possibilidade de vencer aquele que guarda todo o tesouro das histórias e de transformar as herdeiras e os herdeiros de Ananse em autores de sua própria história”, afirma a pensadora.

Zélia Amador de Deus é uma grande herdeira de Ananse, uma Mulher-Aranha. Teceu em trabalho diário a construção de uma rede de apoio a pessoas negras no norte do país, distribuindo ao povo a oportunidade de contar suas próprias histórias. Honra a herança da criação, do trabalho e da generosidade. Sua participação fundamental na luta pelas cotas raciais em universidades, campo de seu doutorado pela Universidade Federal do Pará em 2008, resultou em obra referência no tema. 

Na UFPA, onde é professora no Departamento de Artes desde 1978, desenvolveu diversas teias para outras herdeiras e herdeiros de Ananse — por exemplo, ao cofundar o Grupo de Estudos Afro-Amazônico da universidade. Atuou como diretora do Centro de Letras e Artes no período de 1989 a 1993 e foi vice-reitora entre 1993 e 1997. 

Neste mês, Zélia foi laureada com o título de professora emérita da universidade, em honra a todo o seu legado. É uma justa homenagem a quem constrói, inspira e possibilita tantas histórias. Viva Zélia, herdeira de Ananse!

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