Nos últimos anos temos nos deparado com um esvaziamento de conceitos transformadores.
Há uma tentativa de tornar superficial para que se retire o potencial revolucionário de lutas importantes. Por exemplo, em vez de se dizer que empoderamento é organização coletiva para transformação social, vemos propagandas vendendo empoderamento ligando-o ao consumo.
Não quero ser aquela pessoa que dita as coisas, nem a chata nostálgica. Entendo que é preciso, para muitos, ganhar dinheiro com as redes. Porém é preciso conhecer o caminho percorrido por aquelas que nos antecederam. Aprender com mulheres que desafiaram seu tempo e construíram um legado e chão batido para que outras pudessem caminhar. Com as redes sociais, muitas pessoas querem falar sobre tudo, sem necessariamente ter compromisso ou base para isso. Daí vemos o movimento feminista ser uma espécie de “lifestyle”: ativistas comprando seguidores, temas importantes sendo tratados
de forma superficial. Do mesmo modo, não há espaço para o diálogo e a criticidade, mas para frases feitas, concordância absoluta sob o risco de “cancelamento”, ofensas e hostilidade.
Com isso, podemos cair num discurso raso que tende somente a agradar, mesmo quando pretendíamos falar sobre assuntos espinhosos. A preocupação com curtidas se torna maior do que o compromisso com a verdade. Em “Erguer a Voz”, (ed. Elefante, 376 págs.) a feminista negra Bell Hooks traz um alerta muito importante sobre a necessidade de estabelecer diálogos com o público com o qual se fala —falar com, e não falar para. Ao ouvir as respostas, segundo Hooks, é possível compreender se nossas palavras agem para resistir, transformar e realmente mudar.
“Em uma cultura consumista na qual somos todos levados a acreditar que o valor de nossa
voz não é determinado pela sua capacidade de desafiar ou possibilitar uma reflexão crítica, mas pelo nível em que é apreciada (às vezes até por nós), é difícil manter uma mensagem libertadora. É difícil manter um senso de direção, uma estratégia para a fala libertadora, se não desafiamos constantemente esses padrões de valorização”, afirma Hooks.
Prender-se somente ao que agrada, ou para não perder seguidores, fragiliza e esvazia o discurso. Há também aqueles que falam de temas pretensamente transformadores, mas que em nada incomodam o status quo. Geralmente, essas pessoas usam muitos pontos de exclamação na frase, falam com muita ênfase pseudorrevoltada, mas o conteúdo em si não desafia; ao contrário, só serve para inflar o ego. É uma espécie de firula, uma revolta enganadora que pode impressionar os desatentos.
“Quando comecei a falar publicamente sobre meu trabalho, ficava desapontada quando o público era provocado e desafiado e, ainda assim, parecia me desaprovar. Meu desejo por aprovação era tão inocente (desde então comecei a entender que é bobo pensar que se pode desafiar e também obter aprovação) quanto bastante perigoso, pois tal desejo pode enfraquecer um comprometimento radical, levando a uma mudança na voz a fim de ganhar reconhecimento.”
Nessa disputa por quem “viraliza” mais, é possível constatar esse enfraquecimento do qual Hooks fala. O movimento feminista, por exemplo, é um movimento político por libertação. Como afirma Amelinha Teles, ser feminista é assumir uma postura incômoda. Lembro de ter sido agredida verbalmente muitas vezes por apresentar pontos discordantes de uma questão e provocar o dissenso. Já me irritei muito com isso, até internalizar que “é preciso entender que a voz libertadora irá necessariamente confrontar, incomodar, exigir que ouvintes até modifiquem as maneiras de ouvir e de ser”.
Só a partir de uma reflexão crítica honesta e profunda sobre a sociedade, a relação entre dominados e subalternizados e as estruturas de opressão, é que podemos avançar para uma prática transformadora. Por mais que precisemos pagar nossas contas, não podemos perder a coerência política.
“É importante para aqueles que permanecem em solidariedade conosco compreender que encontrar uma voz é parte essencial da luta libertadora —um ponto de partida necessário para o oprimido, o explorado—, uma mudança em direção à liberdade. Aquela conversa que nos identifica como descompromissados, sem consciência crítica —que significa uma condição de opressão e exploração—, é absolutamente transformada quando nos engajamos em uma reflexão crítica e quando agimos para enfrentar a dominação. Só estamos preparados para lutar pela liberdade quando essa base está estabelecida.”
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