Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Mover-se para além da dor

Para sermos livres, devemos escolher além de só sobreviver à adversidade

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Sempre me fascinou a maneira pela qual muitas feministas negras escreveram de modo a nos inspirar a viver além da dor, de não permitirmos que nossa existência seja somente marcada por violências. Por mais que seja assim, posto que a sociedade é estruturada por racismo, machismo e capitalismo, muitas trazem a importância de encontrarmos nossas próprias definições. 

A autora bell hooks —assim em minúsculo, a pedido dela—, é uma importante feminista negra americana, dessas que nos fazem refletir nesse sentido. 

Em um texto, ela questiona o álbum “Lemonade”, de Beyoncé. Segundo a autora, por mais que o disco use narrativas de mulheres negras, ele seria mais um produto que confina essa mulher a um lugar de submissão. Diz hooks: “Para sermos verdadeiramente livres, devemos escolher além de simplesmente sobreviver à adversidade. Devemos ousar criar vidas sustentadas no bem-estar e em uma alegria ideal.

Nesse mundo, o ato de fazer e beber limonada será refrescante e azedo, uma mistura da vida real do amargo e do doce, e não uma fala sobre nossa capacidade de suportar a dor, mas uma celebração da nossa capacidade de nos movermos além da dor”.

Em um importante artigo denominado “Recusando-se a Ser uma Vítima”, hooks discute como seria crucial o foco no enfrentamento da dor, e não somente em relatar a dor, pois somente relatar nos fixa no lugar de quem é o objeto da discriminação, logo, na figura imposta por quem está no poder. Nós também somos sujeitos que pensam a transformação. 

Cinco mulheres negras com vestidos brancos e cabelos coloridos dançam em uma roda de ciranda. Inspirada na obra "A Dança"de Henri Matisse
Publicada nesta sexta-feira, 6 de setembro de 2019 - Linoca Souza/Folhapress

Gosto da distinção que a autora faz entre vitimização e resistência militante —a primeira nos reduz, a segunda nos liberta. Importante frisar que vitimização aqui não tem o significado pejorativo do senso comum que desrespeita a luta de minorias, mas sim o sentido de estratégia de luta. 

A autora critica o fato de que, muitas vezes, os grupos que têm privilégios são os que mais se vitimizam, como forma de ganhar visibilidade política. Para hooks, só quem acreditou nos discursos liberais da mídia acredita que será tratado como igual, em uma sociedade racista e machista. 

Logo, para ela, se é sabido que a sociedade discrimina, para além de somente falar sobre isso e cair na identidade vitimada, seria mais prudente encontrar saídas coletivas para romper com essa realidade com resistência militante. 

Outro perigo da identidade vitimada é que a sociedade adora ouvir “histórias tristes ou de superação”, só aceita a mulher negra no lugar da “coitada”, no qual precisa ser guiada, e não no lugar da altivez, do orgulho em ser o que é, como sujeito.

Em um trecho do artigo, ela diz: “Vinda de comunidades feministas no Sul segregacionista, eu nunca tinha escutado das mulheres negras sua vitimização. Enfrentando a dureza, a destruição causada por falta e privação econômica, a injustiça cruel do apartheid racial, eu vivia em um mundo em que as mulheres ganhavam força no compartilhamento de saber e recursos, e não por que se juntavam na base de serem vítimas. A despeito da incrível dor de viver no apartheid racial, as pessoas negras sulistas não falavam sobre nós mesmas como vítimas mesmo quando éramos humilhadas. Nós nos identificávamos mais pela experiência da resistência e do triunfo do que pela natureza de nossa vitimização. Era um fato que a vida era dura, que havia sofrimento. Era pelo enfrentamento desse sofrimento com graça e dignidade que uma pessoa experienciava transformação”. 

Não há negação das estruturas, não é um discurso vazio e liberal, ao contrário. Justamente o entendimento de como as estruturas funcionam a faz pensar numa possibilidade de mundo em que possamos ser humanas. Acho interessante como dialoga com o poema de Maya Angelou “Ainda Assim, Eu me Levanto”. 

Angelou traz os impactos do racismo, mas sempre o desafia. “Você pode me fuzilar com palavras/ E me retalhar com seu olhar/ Pode me matar com seu ódio/Ainda assim, eu vou me levantar.”

É não deixar a dor os paralisar, ousar sonhar em um mundo em que esse direito nos foi negado. A potência dessas palavras soa como uma afirmação metafísica da liberdade. É a utopia que nos guia a fim de não nos conformarmos com os horrores diários. É contar a história do Brasil não só pela ótica do povo negro que foi escravizado, mas contar a partir do quilombo de Palmares. 

Mover-se para além da dor, ainda assim, e se levantar, são atos restituidores de sonhos, de possibilidades de existências plenas, de poder dizer: “Para sermos verdadeiramente livres, devemos escolher além de simplesmente sobreviver à adversidade”.

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