Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Livros

Histórias contadas pelos mais velhos sempre nos ensinam algo de novo

'Faria Tudo Outra Vez' faz boa difusão de vozes e saberes de mulheres negras de religiões de matriz africana

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Quem já foi à Cidade Maravilhosa, que, embora mal das pernas pelos sucessivos governos milicianos, continua linda, tem um encontro marcado para voltar, sobretudo quem anda com o povo que veste branco.

Li recentemente um livro que conta sobre Dona Poeira. Com sua gargalhada e conselhos, encanta quarteirões em grandes festas na zona oeste da cidade. Eu mesma, que nunca a conheci pessoalmente, estou doida para ir, tamanha a reverência que é feita em torno dela. Poeira é a pombagira de Mãe Marcia Marçal de Obaluaê, a quem peço a bênção para falar a respeito na coluna desta semana.

Recentemente, Mãe Marcia lançou o precioso livro “Faria Tudo Outra Vez”, pela editora Aruanda, que tem feito importante trabalho de difusão de vozes e saberes de mulheres negras de religião de matriz africana.

Desenho mostra mulher negra gorda com roupas brancas de religiões de matriz africana ao lado de homem negro que incorpora orixá
Publicada em 8 de junho de 2021 - Linoca Souza

O livro é o resultado de conversas de Mãe Márcia com seus devotos filhos de santo que transcreveram e fizeram uma belíssima edição no material. Falo com conhecimento de causa, pois tive a honra e a alegria de receber o convite de Mãe Marcia para prefaciar a obra, quando então pude me sentar e ler o material que foi enviado.

Confesso que demorei alguns dias para escrever. Cancelei os compromissos que podia cancelar, enquanto alguns outros fiz com a cabeça pensando em que hora voltaria a ler a história de Mãe Marcia Marçal, sacerdotisa de Obaluaê, o orixá da terra, a quem pedimos para que espante a doença e nos dê força para suportar as adversidades.

Ao terminar de ler a obra, fiquei alguns dias pensativa até que consegui sentar e escrever. A questão de tomar contato com a sabedoria das mais velhas e dos mais velhos é que você pode ouvir a mesma história várias vezes que sempre, em algum momento, poderá aprender algo novo, receber uma mensagem que faça sentido para aquele momento específico.

Então, ao escrever, minha sensação era de gratidão, pois ler sua obra encheu-me da coragem de que precisava para enfrentar desafios. Trata-se de uma história de muita ausência, como é comum
entre as mulheres pretas deste país, confinadas por gerações em trabalhos sub-remunerados, mas também de muita determinação, criatividade e amor.

Desde criança, Mãe Marcia teve diante de si a infância reduzida pelas obrigações da fome e pelo amor que sentia por sua mãe Geni. Logo aos dois anos seu pai morreu, sobrando a mãe com seis filhos e nenhuma condição de alimentá-los devidamente. Para muitas mulheres nessa situação o alcoolismo é uma saída, uma vez que não há como suportar os problemas.

Já para aquela criança iluminada, o caminho está aberto para a magia. O amor pela mãe com sonhos enterrados pela miséria é o que a move, fazendo de tudo um pouco para honrá-la: encher caminhão de terra para vender, suportar o trabalho para uma vizinha branca tão pobre, mas branca, e por isso em condições estruturais para seguir os caminhos de seus antepassados feitores.

Quando a vontade de assistir à novela de entreolho na televisão da casa do vizinho foi interrompida pela despensa vazia, Mãe Marcia cantou a cantiga para seu padrinho Xangô, o orixá da justiça, e uma bicicleta passou na rua trazendo-lhe a rota para uma feira próspera.

Amadureceu na luta, vendendo curso de autoescola, aliás, sendo a que mais vendia na região, como também abrindo sua própria escola até que o destino veio bater às portas. Em meio às correrias de uma vida de sobrevivência, Dona Poeira movia seus pauzinhos, e seu pai Obaluaê abençoava o caminho para que percorresse seu devido lugar, o lugar do sacerdócio.

Contar sobre o livro é contar uma grande história. Como escrevi no prefácio, tenho certeza que seu enredo será disputado por produtoras ávidas em levar para as telas de cinema. Se não hoje, com certeza amanhã, quando as pessoas negras que fizeram desse país o orgulho de nós todos forem agentes de suas próprias histórias.

Até lá, veremos pessoas brancas de pouca relevância, ou ainda cuja relevância foi ter assassinado alguém, serem glamorizadas. Mas sem pressa, o movimento do povo preto está chegando e não tem mais volta.

Hoje em dia, mais de 30 anos depois, Mãe Marcia Marçal que amou muito sua mãe também pode amar seu filho Yuri, que tem brilhado como um grande humorista que mobiliza a comédia como ferramenta de provocação de instabilidade em favor da população negra, que encontrou meios extraordinários de sobrevivência e plenitude em um país de tanta negação do sistema que a perseguiu.

Ao ouvirmos e lermos a história das mais velhas ganhamos lições inestimáveis de amor e estratégia. Recomendo fortemente a leitura.

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