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Ex-evangélico usa Libras que aprendeu na igreja para traduzir umbanda e candomblé

Marcelo Guti usa sinais com as mãos para passar mensagens de entidades como pombagira

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São Paulo

Pombagira é o diabo? Induz alguém a virar gay? Foi uma prostituta?

Por onde começar? As deturpações sobre a entidade de religiões afrobrasileiras, em geral representada como uma mulher com cabelos pretos e aura sedutora, levam Marcelo Guti a querer sair na mão.

Nada bélico, no seu caso. Foi com ela que o intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) conseguiu traduzir para um rapaz surdo que a pombagira não é coisa do capeta só porque veste vermelho e preto, cores que ele aprendeu a associar ao demônio.

Ou que entidade nenhuma "homossexualiza" uma pessoa, e que o espírito feminino incorporado por médiuns, segundo crenças como umbanda e candomblé, pode ter sido meretriz em vidas passadas, mas também cozinheira, enfermeira, fazendeira.

Cofundador do Instituto Mãos que Cantam, escola de Libras em Guarulhos (SP), e intérprete do Sérgio Mallandro, Guti é referência num campo pouco desbravado até aqui: interpretar em sinais o linguajar típico de religiões como a umbanda, povoada por figuras como preto-velho, erê (crianças), marinheiro e caboclo.

Além de expressões como “abrir a gira” (começar os trabalhos no terreiro), é preciso traduzir formas de falar bem específicas. Um erê, por exemplo, se expressa de um jeito mais infantilizado e, enquanto o médium que o encarna devora pirulitos e jujubas, pode improvisar palavras para se referir a conceitos que ainda não entende bem —uma escola vira “estudador”.

​“Babado”, Guti, 37, resume assim a trajetória que o conduziu até um ofício que se embaralha com missão espiritual.

Outra forma de fazê-lo: homossexual neto de mãe de santo, na adolescência se converteu evangélico porque buscava uma “cura gay”. Demorou 13 anos para perceber que ela não existia.

Frequentava a Congregação Cristã no Brasil, pioneira do pentecostalismo nacional. “Na igreja, achava que Deus ia me curar da homossexualidade. Eu não era assumido, sofria com isso, não conhecia nenhum homoafetivo. Achava que era uma aberração”, conta.

Aos 27, quando se tocou que orientação sexual não é algo que passa orando, tentou se matar com uma overdose de fármacos. Ficou uma semana internado.

Guti conta que pouco depois, já fora da Congregação Cristã, resolveu encarar uma leitura de baralho cigano, mas ainda no torpor da fé evangélica que via a prática como “coisa de macumbeiro”.

A entidade cigana que guiava os trabalhos perguntou, segundo ele: “Por que você tentou o suicídio? Você tem uma missão através das suas mãos, nunca mais faça isso”.

Se Guti hoje domina Libras, é por causa da temporada cristã. A própria história do sistema de sinais, aliás, tem lastro religioso.

Casamentos consanguíneos resultaram numa taxa de surdez acima da média entre os filhos da nobreza espanhola do século 16. Partiu de um monge beneditino, Pedro Ponce de León, elaborar um método para educar esses herdeiros.

“Tudo começou nas igrejas”, afirma Guti. “Alguns monges têm voto de silêncio e usam sinais. Então [León] conseguiu se comunicar com surdos, e surgiu ali a primeira escola para surdos no mundo, no monastério. Pensavam na época que surdos não tinham raciocínio —nem alma—, aí veio a esfera educacional.”

Ele aprendeu a técnica na igreja, que lhe ofereceu um curso gratuito para ajudar com o público de surdos que não conseguia acompanhar a pregação do pastor. Por oito anos, foi bancário de dia e intérprete nos cultos da noite.

Na mesma época, outro episódio o atiçou. Estava na gira com uma amiga, e ela ficou curiosa: como um surdo entenderia o que acontecia no terreiro. Ele não fazia ideia.

“A uns quatro metros, tinha um exu incorporado, de costas pra nós. Não dava pra ouvir nossa conversa porque a gente sussurrava. Mas na hora ele se virou e fez um sinal com as mãos que significava ‘I Love You’ [eu te amo] em Libras”, diz.

Trata-se do gesto manual que lembra um chifrinho e por isso, no imaginário popular, remete ao diabo —o que, segundo o intérprete, gera vários mal entendidos. São as letras I, L e Y numa mesma mão empunhada. “O papa fez, [Barack] Obama também, a Xuxa sempre faz, ela sabe Libras e ama os surdos.”

Guti (com chapéu de paquita) e Xuxa fazem o mesmo gestual, com os dedos mindinho, indicador e polegar erguidos para uma foto que ele envia à Folha. Lembra de uma fake news antiga sobre a apresentadora.

“Dizem que ela tem pacto do diabo [por fazer o gesto]", afirma. "Que mania que sociedade conservadora tem de ver diabo onde existe amor."

A repulsa de parcela da sociedade à sua homossexualidade é logo resgatada. Em 2019, ele e o então noivo aparecem em reportagens após tentarem alugar ternos para o casamento.

“O dono da loja ficou histérico e gritou na frente dos outros clientes que não queria essa raça ali.” O casal prestou queixa na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância.

Foi na mesma Congregação que oprimia sua sexualidade, contudo, que ele adquiriu as ferramentas para ajudar a universalizar a fé afrobrasileira para quem tem deficiência auditiva. Um dos primeiros desafios nessa seara foi em 2014, quando o chamaram para ser o especialista de Libras no Teleton, maratona filantrópica exibida pelo SBT.

Cabia a ele traduzir uma das artistas que se apresentaria, Daniela Mercury. Ela cantaria “Oyá por Nós”, uma música sobre a orixá Iansã, e ele se desesperou. Não tinha ideia de como passar o recado, e não encontrou intérpretes dispostos a ajudá-lo —muitos vem de igrejas e tem preconceito com religiões de matriz africana, diz.

Diz que deu sorte naquela vez, porque ela mudou a canção de última hora, mas hoje já seria capaz de passar a mensagem.

Guti fez carreira no ramo. Tem um canal no YouTube com quase 300 vídeos, todos acessíveis em Libras. Lá você vai achar stand-up do Sérgio Mallandro, pop da Pabllo Vittar, gospel do pastor Kleber Lucas, funk de Anitta e Nego do Borel.

As traduções para umbanda e candomblé são mais recentes na plataforma e exigem mais estudo.

"Como Libras é uma língua, como inglês e espanhol, tem todos os recursos linguísticos e socioculturais, a diferença é que é visual, não oral", explica. "Uso todo o meu corpo pra me comunicar com um surdo. Se o erê fala de um jeito mais infantilizado, tenho que passar isso na expressão facial."

Guti diz que muitos que possuem alguma deficiência auditiva lhe confessam que não se sentiam confortáveis em igrejas cristãs, mas se viam sem opções e acabavam nelas. Entender o que as entidades expressam abriu um novo caminho para essa trupe. "Mesmo um surdo sente a vibração do atabaque."

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