Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Um livro que mostra a dinâmica de relações atravessadas pelo patriarcado

'A Manipulação das Ostras' aborda casamento de português com negra no RS

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Li recentemente o livro "A Manipulação das Ostras", do crítico literário Luiz Maurício Azevedo, publicado pela editora Figura de Linguagem.

Assim como muitas leitoras e leitores desta Folha, conheço Luiz Maurício como um crítico literário independente, como um teórico da literatura, doutor pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), e também como um pensador marxista com quem gosto de trocar sobre afromarxismo, tema de uma de suas mais conhecidas obras.

Nesta obra, fui conhecer o Luiz Maurício ficcionista.

Ganhei esse livro do próprio autor na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, no último ano, quando tive a oportunidade de mediar a mesa "Entrar no bosque de luz", com a presença dele e das escritoras Saidiya Hartman e Rita Segato.

Lançada em 2022, a obra é um convite a diversas reflexões a partir da extensa família constituída por um homem branco, imigrante português que chegou à cidade de Rio Grande (RS), e uma mulher negra gaúcha do início até o final do século 20. A leitura me tomou a cada capítulo, pela versatilidade de formas de escrita em que eram contadas as histórias de cada filho e de cada filha resultantes dessa união e pela sofisticação dos detalhes.

Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 15 de junho de 2023 - Aline Bispo

E, ao fazer isso, o autor passa pelo universo particular da família Azevedo, formada por Balbina e João, mas que atravessa a união inter-racial de um modo geral —como o incômodo da comunidade, sobretudo branca, diante daquele relacionamento. A obra contextualiza a época pela divisão racial e sexual dos papéis da mãe e do pai, expondo preconceitos que continuam contemporâneos, e está longe de ser uma história romântica, mas, da mesma forma, explora a luta de pessoas trabalhadoras que batalharam muito para sustentar suas próprias famílias.

As histórias de orgulho intrafamiliares contrastam com episódios de violência, que mostram como a falta de delicadeza no cotidiano pode resultar em tragédias que se repetem por gerações. Em particular, entre a mais de uma dezena de filhos e filhas, tocaram-me os obstáculos enfrentados dentro da família por uma das filhas, que queria estudar numa época em que uma menina negra tinha oportunidades ínfimas de estudo.

Sobre as personagens dessa família, para quem manuseia o livro pela primeira vez, há um certo incômodo sobre como a fala das mulheres é suprimida por travessões vazios. Na primeira vez, fica a impressão de um erro de edição, como se o terno customizado na alfaiataria editorial de Luiz Maurício deixasse passar um risco de giz. Mas, quando me deparei nas páginas seguintes com travessões vazios seguidos de outros, entendi que o autor estava passando uma mensagem.

Fui me lembrar, então, do nosso encontro em novembro, quando ele contou uma história do funcionário da gráfica que ligou preocupado para ele quando recebeu a primeira edição e disse que havia um erro no livro. Ao que Luiz Maurício disse que era proposital e passou a falar sobre a teoria de representação do apagamento das mulheres pela linguagem, quando, ao final daquela breve e inesperada palestra, o gráfico respondeu: "Tá bem, então vai errado assim mesmo?".

Os esforços quixotescos de Luiz Maurício que se trombaram com os moinhos do gráfico não deixaram de nos levar à reflexão pela publicação dessa obra. Na maioria das vezes, as falas das personagens mulheres aparecem somente quando falam entre si, sem a presença masculina. Com um homem no ambiente, o que elas dizem é interpretado por intermédio do personagem.

Como uma iniciativa pioneira, o livro pode despertar inspirações que nos tiram do lugar-comum, mas, no caso daquela família gaúcha, na qual a voz das mulheres foi abafada por gerações, é somente entre elas que suas linhas narrativas alcançam maior liberdade e desafiam a história oficial de louros aos personagens masculinos, em especial ao patriarca da família.

É uma provocação interessante: uma história oficial familiar desmanchada pela conversa franca entre duas mulheres em um ambiente reservado. Da mesma forma que podemos ver uma denúncia à opressão que silencia as mulheres, quando as mulheres falam, a sabotagem às iniciativas de autoglorificação presentes em dinâmicas de poder que desprezam o feminino é celebrada.

Ao ousar na forma, Luiz Maurício expõe uma dinâmica comum nas relações atravessadas pelo patriarcado e nos presenteia com um belo livro.

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