Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Djamila Ribeiro

Três anos da morte do menino Miguel no Recife

Morte trágica produziu imensa revolta e dor na comunidade negra de todo o país

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Neste 2 de junho, a morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, no Recife, completa três anos. O menino de apenas cinco anos de idade morreu ao cair do 9º andar de um prédio habitado pela elite pernambucana.

Diante das circunstâncias, essa morte trágica produziu imensa revolta e dor na comunidade negra de todo o país. Era o ápice da pandemia, a maioria das pessoas estava em suas casas sob isolamento. Mas não era o caso de Mirtes Renata, que, obrigada a ir trabalhar, levou seu filho Miguel, pois não tinha com quem deixá-lo.

Durante o trabalho, Mirtes teve que passear com o cachorro da então patroa, Sari Corte Real. Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso imagina que a criança estaria sob uma vigilância enquanto a mãe, que sequer deveria ter ido trabalhar, foi obrigada a se ausentar por um período.

Mas as câmeras de vigilância do prédio mostraram que a patroa deixou a criança sozinha. E mais: permitiu que ela saísse do apartamento e franqueou a entrada da criança sozinha no elevador. Perdida e sem supervisão, a criança caiu de mais de 30 metros e foi encontrada pela própria Mirtes, quando voltava com o cachorro.

Uma conduta inaceitável de quem tinha o dever de vigiar Miguel. Justiça alguma o trará de volta, mas uma decisão judicial pode trazer algum conforto à mãe, que recorre da condenação da ex-patroa a oito anos e nove meses de prisão, com direito a recurso em liberdade e direito a ficar com o passaporte. Sari pagou fiança logo após a morte do menino e jamais foi presa, apesar dos pedidos para tanto.

Não vamos neste espaço entrar no mérito da sentença, mas é inevitável fazer uma comparação: se as pessoas negras, alvos preferenciais do sistema de Justiça, fossem resguardadas em seus direitos com zelo semelhante ao dispensado pelo tribunal de Pernambuco a Corte Real, aí não veríamos nenhum racismo.

A ilustração de fundo azul claro, traz ao centro a imagem de Mirtes Renata, mãe do menino Miguel. Ela é negra, usa tranças longas de cor castanho escuro, está com o punho direito erguido e usa uma camiseta azul royal, onde aparece o título do livro "Ouçam Mirtes, mãe de Miguel".
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 1º de junho de 2023 - Aline Bispo

Como escrevi certa vez nesta Folha, o caso do menino Miguel é uma síntese do Brasil. E é por diversas razões. Uma delas porque, como escreveu a professora Juliana Teixeira, qualquer uma de nós poderia ser a criança Miguel. Minha mãe foi trabalhadora doméstica, como também a mãe de Juliana, de Mirtes, de Miguel e de milhões de pessoas negras.

É uma experiência comum de pessoas negras acompanharem nossas mães no emprego doméstico. Temos que ficar quietas, em algum cantinho não frequentado da casa, para não atrapalhar o descanso dos patrões.

O outro lado da moeda também é verdadeiro: muitas de nós também poderíamos ser Mirtes Renata: mulheres negras forçadas a trabalhar, posto que o racismo nos empobrece e dependemos do dinheiro concentrado nas mãos de pessoas brancas, que exercem seu privilégio à custa da saúde mental e familiar da comunidade negra.

A luta da mãe do menino Miguel por justiça é a luta de todas nós pela condenação dos responsáveis por esse crime terrível. É a luta por dignidade, pela vida de nossos filhos e filhas, pelo simples direito ao trabalho humanizado.

Outra razão é a podridão que sustenta a casa-grande. Somada à conduta criminosa da então patroa, o então patrão, Sérgio Hacker Corte Real, por sua vez, pagava os serviços de Mirtes e de sua mãe, Marta, a avó de Miguel, e de uma terceira trabalhadora doméstica com recursos do município de Tamandaré, no interior do estado, onde era prefeito.

Era, não é mais. As capitanias hereditárias que seguem em Pernambuco sofreram um revés nas últimas eleições municipais com a perda pela família Hacker da prefeitura de Tamandaré, diante da repercussão do caso do menino Miguel. A breve carreira política de Sérgio Hacker Corte Real afundou.

Nesses três anos, muita coisa aconteceu. Mirtes Renata se matriculou em uma faculdade de direito e vem articulando atos e eventos culturais para que esse caso inspire mudanças na sociedade brasileira.

E a manifestação pela memória, verdade e justiça ao menino Miguel será neste dia 2. Mirtes Renata informou que a concentração do ato ocorrerá às 14h em frente às Torres Gêmeas, no Cais de Santa Rita, onde Miguel perdeu a vida, e seguirá até o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE), na praça da República.

Mesmo longe, estarei com meu coração marchando junto. Justiça para Miguel!

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.