Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Todas Natal

Olhar para si mesma significa ter coragem para enxergar as suas sombras

Não sucumbir à saudade e à tristeza fica difícil quando escutamos as canções melancólicas dos filmes de Natal

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No final do ano refletimos sobre a vida, o que desejamos mudar, cortes que precisamos fazer, conquistas que nos deixarão mais felizes. Num mundo cada vez mais asfixiante, tanto no sentido climático, quanto no em termos de esperança, precisamos encontrar brisas que escapam pelas frestas.

Não sucumbir à saudade e à tristeza das perdas fica mais difícil quando escutamos as canções melancólicas dos filmes de Natal. Melhor deixar ser tomado pela tristeza, sentir a dor sem se apegar a ela. Para quem tem uma família amorosa, a alegria é próspera e abundante. Para quem não tem, cabe encontrar formas de sublimar nem sempre fáceis

Mas penso que, apesar de tudo, há de se ter coragem para mergulhar dentro de si e olhar com verdade para o que se é, sem nenhum filtro —inclusive de Instagram.

Provavelmente, na noite de Natal, pessoas vão postar fotos ao redor da árvore, sentadas à mesa farta com seus familiares. Outras mostrarão registros das viagens por lugares paradisíacos. Algumas vão questionar a felicidade do primeiro grupo de pessoas dizendo que não acreditam na hipocrisia de fim de ano. O primeiro grupo vai rebater chamando os críticos de amargurados, invejosos e infelizes.

Um outro grupo, os revolucionários de redes sociais, escreverá grandes textos afirmando o quanto essa época do ano só serve ao capitalismo e que as pessoas são alienadas, finalizando o post com a frase: "mas vocês não estão prontos para essa conversa". Um quarto grupo vai rebater dizendo que está cansado de textão e usará o jargão "descansa, militante".

A ilustração traz a figura da orixá Oxum (divindade afro religiosa, ligada às águas, cultuada também no Brasil) ela é negra, usa uma roupa amarela e segura em sua mão esquerda um abebé (objeto ritualístico que contém um espelho) também amarelo e ao seu redor peixes pequenos a cercam.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 22 de dezembro de 2023 - Aline Bispo/Folhapress

A verdade é que nada disso tem importância. No afã de parecer ser, a maioria se perde na ilusão das belas imagens com filtros ou palavras de ordem.

Como Carlos Drummond de Andrade escreve em "Receita de Ano-Novo": "não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta; não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas, nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações".

Às vezes, as pessoas só querem se inebriar de alegria, nem que por alguns dias, sem precisar responder quais serão as soluções para a paz mundial e o fim do capitalismo. Ou ainda, algumas vão preferir silenciar os barulhos de fim de ano sem postar sobre suas vidas.

Independentemente de como vive o outro, insisto, deveríamos olhar para nós mesmos. Não acredito em um movimento por mudanças com pessoas adoecidas. Antes de sermos agentes de transformação, precisamos aprender a sermos humanos. E isso implica reconhecer e respeitar a humanidade do outro. Resgatar o senso de dignidade, refutar a imagem vazia e o radicalismo narcisista que cega e impõe dicotomias estéreis.

Porém, é mais fácil apontar o dedo para o outro sem se comprometer em criar mundos possíveis. Em vez de apenas julgar a vida do outro, por que não dedicar o tempo para construir aquilo que se acredita?

Quando Oxum, ao se olhar no espelho, nos ensina sobre autocuidado, ela também quer dizer que o olhar pra si significa ter a coragem para enxergar as suas sombras. Ver aquilo que escondemos, mas que aparece com força toda vez que projetamos nos outros. É preciso muita força de caráter para admitir nossas falhas e desafios.

Se de fato o inferno são os outros, como refletiu Sartre sobre o conflito das consciências —porque desejamos impor nossas consciências às dos outros—, também é igualmente verdade que má-fé, no puro estrito sentido sartreano, é sempre culpar alguém pelos nossos problemas ou delegar a solução para outrem.

Tanto a filosofia iorubá pensada a partir de Oxum quanto o existencialismo de Sartre são precisos em suas análises, mas nas redes sociais ou nas festividades em família, as pessoas brigariam e cancelariam umas às outras, querendo impor qual é a melhor e, de novo, impondo dicotomias estéreis.

O novo sempre vem, diz a canção de Belchior, "Como Nossos Pais". De fato vem, mas na maioria das vezes, mantém tudo igual. Acredito que Drummond, mais uma vez, está correto: "para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano-Novo cochila e espera desde sempre".

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