Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Conceição Evaristo, a intelectual do ano

Uma justa homenagem a quem deu um novo sentido à palavra 'memória'

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Quando Conceição Evaristo me vem à memória fico feliz, não importa a situação. Aliás, justamente em horas em que estou estressada a visita dessa escritora nos meus pensamentos é um antídoto de felicidade contra qualquer baixo astral.

Lembro-me do dia em que a conheci, quando fui entrevistá-la. Estava nervosa, mas logo o olhar acolhedor da mais velha me acalmou. Anos mais tarde, lembro-me do dia em que a abracei na Flip, depois de uma jornada dura e hostil, quando pude me sentir em casa novamente. Lembro-me bem de seus conselhos e afagos.

Lembro-me de quando estivemos juntas com Alice Walker, rindo com a escritora estadunidense quando ela, pela primeira vez, ouviu o ditado "os cães ladram e a caravana passa", dito por Conceição, e não se conteve em uma inesperada gargalhada. Lembro-me de estar na plateia aplaudindo sua posse na cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência, na Universidade de São Paulo, sendo homenageada, ainda, por tocante discurso de Sueli Carneiro.

São tantas memórias. Bienal de Brasília, Flup, Festival Literário de Porto Alegre. Conceição andou por essas bandas e muitas outras nos últimos anos, marcando seu nome na história da literatura brasileira.

Cada fio de lembrança se ramifica em outros, formando uma constelação de memórias boas. Ler suas obras é me cultivar com sabedoria e matar um pouquinho das saudades. Quero falar sobre o seu mais recente livro, "Canção para Ninar Menino Grande", publicado pela Pallas Editora, em uma adaptação da própria obra.

Ilustração de Aline Souza para coluna de Djamila Ribeiro de 21 de setembro de 2023 - Aline Souza

Como seus conterrâneos mineiros Carlos Drummond de Andrade e Milton Nascimento (mineiro de coração), Evaristo preparou uma canção em que minha mãe se reconheceria, em que todas as mães se reconheceriam, que acordam os homens e adormecem os meninos.

A escritora nos convida a conhecer Fio Jasmin, um ajudante de maquinista, casado. Pela profissão, ele visita várias cidades e em cada uma delas ele se relaciona com mulheres. Mas Jasmin, como uma flor que nasce do espinho, exala perfume e se acostuma em ferir quem quer que nele encoste.

Galanteador e irresponsável, lindo e imaturo, sofre a crise de uma realeza irreconhecida pela sociedade atravessada pelo racismo. No meio de muitos caminhos entre a expectativa e a realidade, entre inconsequência e ilusão, o olhar sobre o jovem maquinista nos ajuda a compreender as complexas faces da masculinidade.

As impressões sobre o personagem nos são apresentadas pelas mulheres que, a cada capítulo, sobem ao palco para contar como conheceram o jovem maquinista, lembrar histórias e dizer sobre os efeitos dessa passagem itinerante em suas vidas, tecendo o Fio que une as experiências em comum e as memórias cotidianas narradas e que constituem a cultura brasileira.

São as escrevivências de Evaristo, que, ao conceituar o termo, deu nome à tradição literária do povo negro brasileiro, que resiste e existe há séculos através das letras faladas e escritas. Seus livros são um chamado aos jardins das nossas mães e avós. Seu trabalho abriu as margens para que tantas pessoas nela se inspirem para também deixar em papel aqueles encontros que acontecem nos "becos da memória", tomando aqui a liberdade para citar o título de outra obra sua que muito me emociona.

Nesse livro, também publicado pela Pallas Editora, Conceição escreve a magia que muitas, olhando uma lua cheia, conjuram para sublimar as dificuldades e honrar os antepassados que nos trouxeram até aqui: "Um dia, agora, ela já sabia qual seria a sua ferramenta, a escrita. Um dia, ela haveria de narrar, de fazer soar, de soltar as vozes, os murmúrios, os silêncios, o grito abafado que existia. Que era de cada um e de todos. Maria-Nova um dia escreveria a fala de seu povo".

Essa brilhante escritora –doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense e ativista em prol das editoras negras— é uma árvore imensa, uma jaqueira de memória ancestral, imortalizada pelo povo, que se alimenta de seus frutos, descansa sob sua sombra e conta sobre as histórias das vivências do dia a dia.

Em festa, aplaudimos Conceição Evaristo como a Intelectual do Ano, no prestigiado Prêmio Juca Pato, concedido pela União Brasileira de Escritores, em razão do livro "Canção para Ninar Menino Grande". Justa homenagem a quem deu um novo sentido à palavra "memória".

Viva Conceição Evaristo!

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