Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Todas

Precisamos destruir os aquários e parar de temer o oceano

Nós, negras e indígenas, também temos nados belos, porém apertados num pequeno aquário

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Em Santos há um aquário municipal e eu levava minha filha muito lá. Em uma das vezes, me lembro de ver uma arraia nadando e me distraí com a beleza daquele nado. Ela deslizava movendo suas nadadeiras e era a preferida das pessoas que estavam tirando fotos.

Fui embora e fiquei refletindo sobre o dilema daquela arraia, que nadava lindamente, mas ainda estava presa às dimensões do aquário. O episódio me levou a uma metáfora sobre a situação das mulheres. As mulheres brancas nadam lindamente num aquário bem grande, do tamanho do aquário da arraia. Nós, mulheres negras, indígenas, estamos em um aquário bem pequeno dentro desse mesmo aquário. Somos também arraias com nados belos, mas apertadas pela dimensão do aquário menor.

A arraia do aquário grande olha para o aquário menor e se compraz por "ser livre", por mais que ela também esteja reduzida às dimensões do viveiro. Então, em vez de olhar para suas semelhantes e pensar "vamos juntas quebrar esses aquários para disputar o oceano", ela quer aumentar o aquário dela, diminuindo o meu, achando que ela é livre, mas sem entender que também está presa.

Penso que essa metáfora nos ajuda a refletir sobre formas de interligar as nossas lutas numa sociedade que precisa de mudanças. Eu fico pensando sobre essas questões no seguinte sentido: que sociedade a gente quer para nós? Porque muitas vezes se entende o feminismo como um movimento que está discutindo a sociedade somente pela perspectiva de gênero. Como feminista negra, contudo, acredito que não há como pensar gênero sem discutir sexualidade, raça, classe et cetera.

A ilustração tem o fundo rosa e quatro pares de pés femininos vistos de cima, eles estão de frente um para os outros e de baixo dos pés saem raízes e folhas verdes que se conectam ao centro.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 1° de fevereiro de 2024 - Aline Bispo/Folhapress

Nos tempos atuais, há uma compreensão de que a mulher empoderada é aquela independente financeiramente. E, obviamente, uma das nossas formas de liberdade é o nosso fortalecimento econômico. Mas quero refletir sobre os limites dessa compreensão, pois acreditar que sua realidade é a realidade de todas faz com que se reproduzam opressões contra mulheres que partem de lugares marcados por mais desigualdades. E mesmo as mulheres que ganham bem, têm um smartphone de última geração, uma geladeira com inúmeras funcionalidades, experimentam a divisão sexual do trabalho.

A mulher, muitas vezes, está obrigada a cozinhar, fazer a compra no supermercado para abastecer essa mesma geladeira, ela é julgada por ser uma mãe que trabalha fora e tem uma carreira ou julgada se não quiser exercer a maternidade. São inúmeros desafios postos para a mulher no mercado de trabalho, mesmo para aquelas que auferem um ótimo salário e posição de poder.

Os mecanismos de opressão se atualizam e confundem muitas de nós. Alguns comerciais na televisão mostram mulheres felizes, maquiadas e magras, limpando suas casas com equipamentos de última geração, criando seus filhos maravilhosamente bem e esperando o marido com um sorriso no rosto.

A gente sabe que isso é uma ilusão comercial, como também é uma ilusão fazer com que se acredite que o corpo da "mulher real" é sarado e está dentro do padrão de beleza construído.

A vida cotidiana não é uma bela propaganda de televisão. Enquanto há mulheres estafadas, no trabalho ou como dona de casa, acumulando inúmeras funções, tem vários homens sendo poupados de compartilhar as tarefas. Acumulando tarefas, a gente não tem tempo para nada, nem para olharmos para nós mesmas. Sermos empoderadas é pensarmos juntas como criar formas de enfrentamento a essas opressões e criarmos oportunidades para outras mulheres que não tiveram as oportunidades que nós tivemos.

Uma CEO pode ser uma mulher lésbica, mas que não pode assumir publicamente seus afetos, pois isso pode representar uma crise em seu cargo. Uma CEO pode ser casada, mas enfrentar uma série de crises pelo fato de o homem não aceitar que ela ocupe uma posição de poder. Enfim, nossas trajetórias individuais de sucesso profissional não fazem desaparecer o machismo. Ele continua aí, atingindo-nos enquanto grupo e, a partir de um grupo, deve ser combatido.

O aquário municipal de Santos, em meados da década de 40, época da sua inauguração - Divulgação/Bruno Arena

Falando a partir de um lugar da mulher negra, mesmo no Brasil, país no qual 54% da população se autodeclara como negra, vejo-me em constante solidão institucional, como já escrevi nesta Folha. Mulheres como eu estão na faxina ou servindo café. Certamente não são CEOs. Em geral, não se sabe nem o nome delas ou quais histórias estão por trás daquela pele escura. Há uma naturalização dos espaços que elas ocupam e os seus sonhos pouco importam.

Para aquelas que, com muita dificuldade, conseguiram romper algumas barreiras, há a tristeza institucionalizada de olhar para o lado e ver poucas ou quase nenhuma como elas. Quem não vem desse lugar social tem o privilégio de ser distraído ou de dizer que nem sequer percebeu ou notou.

Que possamos destruir os aquários e parar de temer o mar.

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