Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
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Justiça para Claudia Silva Ferreira

Que a Justiça do Rei dos Orixás condene cada um, assassinos, cúmplices e omissos

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Diante de tantas injustiças diárias, a misteriosa justiça emociona o povo que acende uma vela e prepara um quiabo bem quente. Aos pés de Xangô, quem é de axé chama pela intercessão do rei sobre o injusto.

Kaô, Kabecilê! Vamos saudar o Rei ancestral de Oyó que cruzou o oceano com seu povo no inominável navio negreiro. Por mais de 300 anos, milhões de pessoas foram humilhadas, amarradas e arrastadas, ficaram imóveis por meses, gritando, suplicando para que morressem, pois mesmo a morte era um destino melhor que aquele. Apanharam de pau e pontapé no escuro, adoeceram, morreram jogadas ao mar.

O rei chegou com seu povo sobrevivente nos portos. No Rio de Janeiro, desembarcou onde está atualmente o Museu do Amanhã, tempo que muito nos interessa, desde que acertemos as contas do passado, para um presente mais honesto. Ali, naquele cais, viu seu povo ser vendido. Dedos imundos passaram pelas gengivas de minhas antepassadas, seus seios e nádegas foram apertados. Uma língua incompreensível e um bafo podre regurgitaram abominações em seus ouvidos, como se aquelas pessoas fossem um objeto.

Em destaque, ao centro do fundo vermelho, está a ilustração de machado branco, dele saem faíscas de fogo. Dentro de alguns cultos de matrizes africanas, como o Candomblé e a Umbanda, o machado é um dos símbolos ligados a Xangô, o Orixá citado na coluna.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 21 de março de 2024 - Aline Bispo/Folhapress

Quantas de seu povo sofreram violência sexual, meu rei. Quantas foram mortas por motivo algum. Seus filhos acorrentados, sangrando sob a ferida da chibata. E, mesmo assim, coletivamente, esperançaram, geração a geração, um mundo em que seus descendentes tivessem a paz que elas não tiveram.

Dançaram, cantaram e rezaram para são João quando não podiam dizer seu nome. Fortaleceram com seu axé o nosso rei, seus fiéis conselheiros e seu imenso exército.

O poderoso reinado vem contra-atacando desde sempre, e se este país é sinônimo de algo relevante no mundo, tem a assinatura de alguém do seu povo. Não precisamos mais esconder seu nome e chamamos o Rei como a terra chama o trovão.

Xangô!

E ele, zeloso e furioso, condenou muitos à imensa infelicidade. A força do seu machado cortou qualquer alegria na vida e na linhagem do malfeitor. Incinerou planos mesquinhos e assistiu a mentirosos queimarem na própria mentira.

Xangô, meu pai, quanta paciência e estratégia têm sido precisas ao longo desses séculos... Numa canetada, veio a Lei Áurea, e sem nenhuma reparação social a escravidão desembocou nas favelas, na falta de oportunidades para que a população recém-alforriada vivesse dignamente. Como cantou a União Imperial, de que adianta a alforria se nos jogam aos porões?

Com quase tudo nas mãos, a parcela da sociedade no poder escolheu onde iria morar, onde estudaria e em que funções trabalharia. Reservou a alguns negros funções policiais para controlar e punir o povo que, mesmo "liberto", seguiu alvo na festa da branquitude violenta.

Diante da violência, essa é uma história de resistência. E hoje, meu rei, uma caneta está nas mãos de uma de seu povo, pois também a escrita brasileira descende das mãos negras de seu machado.

Temos escrito e repercutido bastante, graças às rezas imbatíveis das nossas avós e ao poder do nosso Rei, que quer cuspir fogo. Está furioso pelo seu povo ter conhecido o inferno e o Diabo de que esses brancos tanto falaram.

Com essa caneta, meu pai, rogo por sua justiça, diante de um crime impossível de esquecer. Honro a memória de Claudia Silva Ferreira, que foi morta pela polícia enquanto ia comprar pão para seus filhos. Seu corpo foi dilacerado após ser arrastado pela viatura por 350 metros, apesar de gritos desesperados para que o veículo parasse.

Para muitos, a vida seguiu como se aquela violência não tivesse produzido memórias. Mas não para sua família. Claudia era mãe de quatro filhos e cuidava de quatro sobrinhos. Acordava de madrugada e trabalhava como auxiliar de serviços em hospital. Estava prestes a celebrar 20 anos de casada.

Xangô, uma mulher de seu povo foi assassinada e vilipendiada, mas nessa semanas seus algozes parecem em festa, afinal foram absolvidos pelo Judiciário, dez anos depois do crime e sequer vão a júri popular.

Aqueles que "acidentalmente" a mataram também são investigados pelo envolvimento em, pelo menos, 60 outras mortes "acidentais", nos conhecidos autos de resistência. Muitas caíram e foram arrastadas juntas com Claudia, mas suas famílias ancestrais estão de pé para um acerto de contas.

Diante desse descalabro, o amalá está fumegando, com bastante dendê. Que a Justiça do Rei dos Orixás condene cada um, assassinos, cúmplices e omissos, ao que merecem. Que tudo o que façam dê errado, que seus pensamentos sejam infelizes e suas linhagens miseráveis.

Pois a Justiça de Xangô é infalível. E Claudia sempre será honrada.

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