Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

No Dia de Iemanjá, minha homenagem a uma estudante

Era poetisa negra, que escrevia sobre sua admiração por Maria Firmina e Conceição Evaristo

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Um "itã" é uma passagem sobre os orixás. Passado de geração a geração, alguns itãs têm milênios de idade. São histórias que nos ligam aos ancestrais, com quem aprendemos o passado e enxergamos o presente. Suas origens são diversas, há variações dentro de um mesmo itã, a depender de quem conta, e alguns são mais populares que outros. Há itãs que nasceram no Brasil, outros em Cuba, outros resistiram aos horrores do tráfico negreiro, chegaram pelo oceano e seguem vivos costurando comportamentos a partir da linha da sabedoria dos mais velhos, das mais velhas.

É dois de fevereiro no Brasil, Dia de Iemanjá. Salvador está com a praia do Rio Vermelho repleta do povo de santo que leva suas oferendas a Iemanjá, a mãe de todas as cabeças, a senhora dos mares.

Em sua honra, popularizou no país, mesmo entre pessoas intolerantes às religiões de matriz africana, as sete ondas puladas na virada do ano e a ela pedimos para que cuide da nossa cabeça, que a cubra com serenidade para as decisões mais difíceis nossas e das pessoas que amamos.

Segundo um itã registrado no livro "Mitologia dos Orixás", de Reginaldo Prandi (p. 382), Iemanjá nasceu da união entre Obatalá, o Céu, e Odudua, a Terra. Iemanjá, as Águas, teve um filho com o irmão Aganju, a Terra Firme, chamado Orungã.

Orungã nutriu por sua mãe um amor incestuoso e um dia a raptou e estuprou. Desesperada, Iemanjá conseguiu escapar e fugir do filho, que a perseguiu.

Na ilustração de fundo azul, a figura de uma mulher está localizada à direita. Ela é negra, veste branco, tem pulseiras, fios de conta e leva nas mãos flores brancas com talos verdes.
Ilustração de Aline Bispo para a coluna de Djamila Ribeiro de 2.fev.23 - Aline Bispo

Quando Orungã estava prestes a apanhá-la novamente, Iemanjá caiu desfalecida. Segundo Prandi, ao desfalecer, "cresceu-lhe desmesuradamente o corpo, como se suas formas se transformassem em vales, montes, serras. De seus seios enormes como duas montanhas nasceram dois rios, que adiante se reuniram numa só lagoa, originando adiante o mar".

Em seguida, o ventre de Iemanjá se rompeu e dele nasceram os orixás: Xangô, o senhor da justiça; Ogum, o orixá da guerra; Oyá, a senhora das tempestades, protetora das mulheres e muitos outros. "Por fim, nasceu Exu, o mensageiro. Cada filho de Iemanjá tem sua história, cada um tem seus poderes", completa o registro feito por Prandi.

A imensidão da grande mãe e seu ventre poderoso são motivos que a fazem tão amada no país, em suas diversas denominações. Nas tradição banto, as flores são para Dandalunda. Na umbanda, religião de matriz africana que é uma síntese do sincretismo da religião negra com o cristianismo e as religiões indígenas, Iemanjá ganhou vários nomes. Um deles, talvez o mais conhecido, é Janaína.

Dona Janaína, como é adorada em muitos terreiros de umbanda, é igualmente adorada nesse dois de fevereiro. E eu peço licença às minhas irmãs e irmãos umbandistas para deixar minha flor para Janaína e para sua filha Janaína Silva Bezerra.

Janaina Bezerra era estudante de jornalismo na Universidade Federal do Piauí, em Teresina, a primeira de sua família a ingressar no ensino superior, e passou entre os cinco primeiros no vestibular. Prodígia, substantivo feminino. Conta sua mãe que Janaina detestava machistas e que seu sonho era trabalhar na televisão.

Era uma poetisa negra que escrevia sobre sua admiração por Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo. Em sua página nas redes sociais, publicou a poesia: "Que solo fértil se fez em mim, para amenizar com indevida complacência o que me rasga a carne / Até para mim que não posso ser ausente de mim / Pertencer continua difícil / Habitar-se em totalidade / Decorar o quartinho grande e por vezes desabitado / Como botar o mar dentro de um aquário / Mas não ousaria me diminuir / Pelas arestas, a visão limitada do eu / Ou por um suspiro que me resta / Prefiro ser dispersa / Imersa no que me cabe por inteiro".

Janaína foi encontrada morta no campus da UFPI, sendo carregada por dois estudantes que foram abordados por um vigia. Estava repleta de hematomas e com sangue escorrendo pela virilha. A conclusão da Polícia Civil do Piauí é que Janaína foi estuprada e teve o pescoço quebrado. A mãe de Janaína afirma que ela foi estuprada por dois homens.

Canta o povo de umbanda, "na areia, me lembrei da sereia. Comecei a chamar. Ô Janaína vem ver, ô Janaína vem cá, receber suas flores, que venho lhe ofertar". Deixo minhas flores para Janaína, que caiu, mas que sua queda, assim como a de Iemanjá, seja uma geração da guerra, da justiça e da luta das mulheres. Do nascimento de um novo mundo.

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