Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Descrição de chapéu Todas aborto

União das mulheres sempre foi vista como perigosa por uma ótica patriarcal

Podemos aprender com a sabedoria de Oxum e assumir o poder que temos, ao contrário do que querem nos fazer acreditar

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Na semana passada, falamos nesta coluna sobre Oxóssi, o orixá da independência, regente das matas e da caça farta. Já nesta semana, falaremos dela, a dona das cachoeiras, que tanto nos ensina sobre o poder do autoamor: Oxum. Muitas histórias são contadas sobre essa grande feiticeira, que se destaca sempre quando aparece.

Um de seus itãs mais conhecidos fala sobre seu poder de fazer prosperar o mundo. Como está contado na obra "Mitologia dos Orixás", logo que o mundo foi criado, todos os orixás vieram para a Terra e começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles, em assembleias nas quais somente os homens podiam participar.

Ilustração de fundo azul claro, com a figura da Orixá Oxum. Ela é uma mulher negra, usa uma roupa amarela e está gestante. Ao seu redor estão flores amarelas e folhas verdes.
Aline Bispo/Folhapress/Folhapress

Oxum não se conformava com essa situação. Ressentida pela exclusão, ela se vingou dos orixás masculinos e condenou todas as mulheres à esterilidade, de sorte que qualquer iniciativa masculina no sentido de fertilidade estava fadada ao fracasso. As águas secaram, e a terra se tornou árida. Por causa disso, os homens foram consultar Olodumare, pois estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer. Estavam sem filhos para criar, nem herdeiros para quem deixar suas posses, sem novos braços para criar riquezas e fazer as guerras e sem descendentes para não deixar morrer suas memórias.

Olodumare soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões. Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres, pois, sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade, nada poderia ir adiante. Os orixás seguiram os sábios conselhos de Olodumare e, assim suas iniciativas, voltaram a ter sucesso. As mulheres tornaram a gerar filhos, e a vida na Terra prosperou.

Na sociedade brasileira, as mulheres não estão sendo convocadas para se sentar às mesas de decisão, inclusive sobre temas relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos. O aborto é criminalizado e, mesmo nos casos de aborto legal, mulheres e meninas estão tendo seus direitos violados —um conselho de homens decidindo o rumo de tudo. Homens com medo que mulheres possam escolher parir ou não, pois o controle da sexualidade está diretamente ligado à produção de mais mão de obra para fazer funcionar as engrenagens do sistema capitalista.

Não nos enganemos. Descriminalização do aborto não é uma pauta de costumes, como querem nos fazer acreditar. É um debate sobre economia, sistema previdenciário, um debate fundamentalmente político. Só que, inversamente ao itã de Oxum, as mulheres seguem sendo enclausuradas em um destino imposto por homens. Sejam eles de esquerda ou de direita, as mãos se unem para fechar acordos que seguem violando a nossa liberdade.

As mulheres seguem confinadas em uma situação, parafraseando Simone de Beauvoir, que impede suas transcendências. São forçadas a parir, mesmo quando vítimas de estupro, morrem em clínicas clandestinas de aborto, sofrem com a violência doméstica e sexual. E o país não prospera. Não há prosperidade possível quando mais da metade da população, salvo raras exceções, segue fora dos conciliábulos e sendo tratada como cidadãs de segunda classe.

A taxa de feminicídio e violência sexual no Brasil é tão alta que deveria pautar as políticas em todos os níveis. Mas não é o que vemos. No Brasil, Oxum segue sendo ignorada pelos homens que estão no poder. E os fantasmas do retrocesso estão assombrando e voltando, banhando-se no sangue derramado. Os homens seguem não ouvindo Olodumare.

Mas nós, mulheres, podemos aprender com a sabedoria de Oxum e assumir o poder que temos, ao contrário do que querem nos fazer acreditar. A união das mulheres sempre foi vista como perigosa por uma ótica patriarcal, pois aí está a base de um poder fecundo. Assim como Oxum, devemos nos olhar no espelho para trabalhar o autocuidado. Oxum, antes de cuidar de seus filhos, limpa as suas joias.

Devemos ter a coragem para olhar no mais profundo de nossos seres e isso significa dizer ter a coragem de enxergar o que é feio, como a reprodução do machismo. Há de se ter coragem para assumir as nossas sombras e não repassar dores. Uma mulher ferida fere outras mulheres. Já uma mulher que busca a cura vai olhar com generosidade e amor para as outras.

Podemos nos apoiar e aprender a levantar da mesa quando nossas vozes não são ouvidas, romper com o pacto da agradabilidade e docilidade que nos separa entre as que são bem-vindas e as que são "non gratas". Cria-se a rivalidade, um final estreito em que poucas conseguem passar para que não nos esbaldemos na fartura das águas que caem das cachoeiras. Os homens sempre temeram as trombas d’água.

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