Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Devemos discutir o ímpeto feminino para dizer sim, oposto imposto ao não

Seja na minha vida, seja naquela da mulher ao meu lado, o 'não' se colocou como um problema, mas precisamos reivindicá-lo

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Em um sistema patriarcal, mulheres partem de um lugar social que as espera na função do cuidado, na disponibilidade para servir. Para muitas, é um processo complexo desenvolver a capacidade de dizer "não" e se justificar com um "porque não quero". Ainda, diante de uma insistência, finalizar dizendo "obrigada, mas não tenho o menor interesse".

Ao centro da imagem de fundo amarelo encontra-se a ilustração de uma mulher. Ela é negra, tem cabelos ondulados, usa uma blusa vermelha, uma saia azul e com a sua mão esquerda faz um sinal de não.
Aline Bispo - Folhapress

Por que é tão difícil dizer não? Bom, vale dizer que existem inúmeras pessoas com dificuldade de dizer não por uma série de motivos individuais, seja a vaidade de tentar agradar todo mundo, seja por experimentar relações hierárquicas profissionais abusivas, ou qualquer outro motivo.

Contudo, podemos nos aprofundar nessa questão por uma perspectiva estrutural e, nesse sentido, vamos trabalhar nesse texto com essa pergunta a partir de um olhar feminista.

Infelizmente, vivemos num país que possui um dos mais altos índices de feminicídio do mundo. Ou seja, um "não" pode ser visto com muita raiva e desencadear uma tragédia, como tem acontecido de forma endêmica.

Somente nas últimas semanas, foram divulgados casos de mulheres mortas por dizerem "não" quando decidiram terminar o relacionamento, seguir com uma gravidez não planejada, ou, ainda, quando assumiram suas vidas profissionais.

De outro lado, precisamos questionar a formatação feminina para dizer "sim", um oposto imposto ao "não". Segundo dados do IBGE, divulgados na Folha na última semana, o Brasil tem, em média, 40 casamentos de meninas a cada dia —a maioria deles com parceiros maiores de 18 anos, 95,4%. Quais condições essas jovens têm para se opor ao "sim"?

Essa imposição está na vida de muitas de nós: "sim" para beijar na boca, "sim" para transar, "sim" para cuidar da casa, "sim" para fazer a comida. Tornar-se mulher, parafraseando Simone de Beauvoir, é estar enredada em uma situação em que se impossibilita a transcendência. É impor o dizer "sim" aos homens.

Conforme vamos tendo contato com a teoria feminista, entendemos de que forma a mulher é impactada pela expectativa que se tem do Outro. A expectativa do "sim" alimenta os obstáculos para o "não".

Na crise de alteridade experimentada por quem reivindica sua humanidade, ante uma construção patriarcal e racista que a nega como sujeito de direitos, é como se fosse esperado da mulher um eterno "sim, senhor", o que está presente nas relações com o marido, filhos e nas relações de trabalho.

Isso também se verifica na experiência de pessoas negras, numa sociedade construída historicamente sob o jugo da escravidão. Mulheres negras ainda experimentam esse constrangimento entre diferentes grupos, o que nos mostra como essa expectativa de servidão está enraizada nas relações cotidianas.

Fixadas em um lugar de subalternidade social, nossas ancestrais desenvolveram a arte de dizer "não" como uma verdadeira tecnologia de resistência ante as dificuldades materiais postas em suas vidas.

Para muitas daquelas que vivem uma condição econômica favorável, o fortalecimento para dizer "não" demanda tempo. Eu mesma tinha uma dificuldade enorme de dizer "porque eu não quero".

Por muito tempo, pensava que era necessário construir uma desculpa mirabolante todas as vezes que queria dizer não —e eu queria muitas vezes por semana.

Em casos recorrentes na minha vida profissional, o conflito de consciências esteve entre a expectativa de quem fez o convite, o qual, para muitas pessoas, estava mais para intimação —uma vez que tinha que aceitar— e a minha própria expectativa de quem queria ser deixada em paz.

Nesse plano de fuga, quantas vezes minha filha ficou doente. Brinco aqui em casa e digo para ela "Thulane, se em algum evento em que você estiver comigo, alguém vier te abraçar com uma certa condescendência e dizer que sente muito pelo que acontece na sua vida, é porque eu já falei tantas vezes sobre você estar doente, que estar viva e bem é um milagre da medicina, minha filha".

Mesmo sendo uma atleta modelo de saúde, ela já teve gripe, já quebrou a perna e sofreu com catapora e rubéola. Em outras vezes em que eu conseguia, com muita dificuldade, dizer "não", fui invadida por um sentimento de culpa, mais uma imposição nessa sociedade patriarcal.

Seja na minha vida, ou naquela da mulher ao meu lado, o "não" se colocou como um problema. Mas devemos reivindicá-lo, pois ser humana é gozar da liberdade de entender o que te interessa, sem que isso seja uma cisma.

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