Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Cigarro barato

O negócio da indústria é fazer o maior número possível de dependentes

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Parece que, de uns tempos para cá, só andamos para trás.

Na contramão das recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde), o Ministério da Justiça criou uma comissão especial para analisar a conveniência da redução dos impostos que incidem sobre o cigarro.

Os lobistas da indústria tabaqueira argumentam que a medida reduziria o contrabando de cigarros paraguaios, de qualidade inferior, taxados com mais benevolência.

Que motivos levariam esses senhores a defender políticas para livrar os cidadãos das garras do crime organizado e, pasmem, proteger a saúde dos fumantes?

Ilustração
Líbero/Folhapress

Na década de 1960, cerca de 60% dos brasileiros com mais de 15 anos fumavam. Dessa geração, estão vivos e com saúde apenas os que conseguiram parar de fumar muitos anos atrás —os demais morreram de câncer, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral ou das complicações do enfisema e de outras doenças pulmonares obstrutivo-crônicas que evoluem com falta de ar progressiva.

O esforço que o país fez para reduzir os impactos dessa tragédia coletiva exigiu o empenho de profissionais de saúde, comunicadores, educadores, legisladores e da própria sociedade como um todo.

A proibição da publicidade pelos meios de comunicação de massa, decretada no ano 2000, retirou da indústria sua arma mais poderosa: o controle da imprensa, refém das verbas publicitárias que impediam a divulgação de qualquer informação científica contrária aos interesses dos anunciantes.

Por causa desse lobby milionário que financiava campanhas políticas e cooptava funcionários públicos venais, avançamos com enorme dificuldade na adoção de medidas então vigentes em outros países, como as imagens de doentes nos maços e a proibição de fumar em ambientes fechados.

Às custas de um trabalho educativo sem precedentes em nossa história, conseguimos desconstruir a imagem criada pela publicidade do século 20. 

O cigarro deixou de ser o hábito chique, associado ao charme de mulheres lindas e homens másculos e sedutores, para se transformar no que realmente é: um vício chinfrim malcheiroso, que provoca hálito repulsivo, tosse com expectoração, fôlego curto, pele de cor doentia e envelhecimento precoce.

O resultado foi impressionante. Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), a prevalência de fumantes com mais de 15 anos caiu de 60% para 10%. Hoje, fumamos menos do que os americanos e do que em todos os países da Europa.

Difícil explicar tamanho avanço. Não temos o nível educacional da Finlândia, França ou Alemanha; o governo brasileiro não investiu em campanhas antitabagistas nem sombra das importâncias gastas pelos países mais ricos e nossos serviços de saúde ainda engatinham no tratamento do tabagismo.

Apesar desses resultados serem citados como exemplo pelos técnicos da OMS, vamos lembrar que os 10% de adultos ainda fumantes formam um contingente de pelo menos 15 milhões de dependentes de nicotina com saúde fragilizada, que demandarão recursos financeiros do SUS, da Previdência Social e também da saúde suplementar.

Em vários estados americanos, as multinacionais que dominam o mercado do fumo têm sido obrigadas a pagar indenizações bilionárias para cobrir, pelo menos em parte, os gastos públicos com o tratamento das doenças causadas pelo cigarro. Talvez porque a vida de um brasileiro seja de pouca valia, aqui jamais pagaram nem um centavo sequer.

O negócio da indústria tabaqueira é vender cigarro barato, para tornar dependentes de nicotina o maior número possível de crianças e adolescentes. No futuro, eles desenvolverão doenças crônicas que consumirão recursos do SUS e elevarão as mensalidades dos planos de saúde. A lógica é pérfida: a sociedade arca com os prejuízos, eles ficam com os lucros.

Certamente eles dirão: “Mas nós pagamos impostos”. Segundo a OMS, para cada dólar de imposto pago, o sistema de saúde gasta três.

A redução de tributos pretendida é uma estratégia vil, destinada a aumentar o número de fumantes pobres, justamente os que serão atendidos pelo SUS. Um mínimo de vergonha na cara evitaria a desculpa dos malefícios dos cigarros paraguaios. Quer dizer que os fumantes de cigarros brasileiros só terão ataques cardíacos, derrames cerebrais e cânceres de alta qualidade?

Ao alegar interesse em combater o crime organizado, os fabricantes de cigarro renegam sua própria história. Essa é uma indústria criminosa que espalha sofrimento e morte pelo mundo inteiro.

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