Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Juro que em 2023, ano dos meus 80 anos, largarei velhos costumes

A vida é um palco em que o cenário muda a toda hora e os personagens se retiram um a um, condenando desatentos

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Todo fim de dezembro, prometo a mim mesmo ser outra pessoa no ano que virá. Revejo os defeitos que me enxovalham a autoimagem e dificultam a minha existência.

Para não transformar a coluna de hoje num rosário de lamúrias, prezada leitora, vou me restringir aos defeitos publicáveis, não falarei daqueles que relego às catacumbas da consciência.

Um arqueiro estica seu arco puxando bem a corda. Ele arma o arco com seu braço esticado para trás (na ilustração, a direita), mas olha para a esquerda, na direção de seu alvo (que não aparece na ilustração). Ele usa uma toca e um manto que parecem ter saído de um conto de fadas. Na sua frente flutua um símbolo de um átomo com núcleo e elétrons como que simbolizando a energia envolvida na ação. A ilustração e seu grafismo transbordam energia e determinação.
Ilustração de Líbero para coluna de Dráuzio Varella - Líbero

Meu pai era contador, dizia preferir o inferno depois da morte para ficar livre dos papéis. Talvez por traço genético, sempre tive problemas com a papelada, nem a internet me libertou dela. Quando um artigo científico ou texto literário impresso cai em minhas mãos, por irrelevante que pareça, coloco sobre a mesa de trabalho para ler ou reler mais tarde, mesmo sabendo que envelhecerá naquele local.

Se tivesse lido 10% dos livros que se acotovelam nas estantes e das revistas científicas empilhadas entre eles, seria um médico de notório saber e o homem culto que sempre desejei ser. As prateleiras abarrotadas no escritório de casa olham para mim como um anátema bíblico que vocifera: "Lembra-te homem: és ignorante e da ignorância jamais te libertarás".

Planejo, então, doar os livros adormecidos há décadas, comprados para atender a interesses que perdi ou que chegaram a mim porque me foram dados por pessoas queridas ou pela incapacidade de me separar deles. Apesar dos fracassos anuais em realizar essa tarefa, juro que agora será diferente.

A mesma dificuldade tenho com as roupas que disputam centímetro a centímetro o espaço no armário. Órfão de mãe desde a tenra infância, aprendi a pregar botões, a fazer pequenos reparos, a manter passadas as camisas e as calças e a engraxar os sapatos até o couro brilhar.

Eles me retribuem com a longevidade: tenho calças e camisas com 20, 30 anos e até mais. Muitas saíram de moda, são usadas quase nunca, mas permanecem ao alcance de meus olhos para deixar claro que sou um desses privilegiados que acumulam mais do que o necessário.

A despeito das tentativas infrutíferas dos anos anteriores, prometo que desta vez vou doar as roupas que passo meses sem vestir. Mas cada peça traz uma recordação: uma viagem, a pessoa que me presenteou, um momento de vida, a qualidade da confecção, a beleza da estampa ou outra desculpa qualquer para disfarçar o apego despropositado do acumulador.

Tenho mais amigos do que tempo para conviver com eles. Todo ano prometo visitá-los, convidá-los para vir em casa, sair para tomar cerveja. Promessas vãs, embora reiteradas toda vez que um deles se vai, acontecimento cada vez mais frequente à medida que envelhecemos, porque a vida é um palco em que o cenário muda a toda hora e os personagens se retiram um a um, condenando o espectador desatento à
perplexidade da solidão.

Cinquenta anos de medicina me ensinaram que o corpo é nosso bem mais precioso. Você, caríssimo leitor, perguntará: "O idiota levou meio século para descobrir o óbvio?". Claro que não, mas demorei mais do que devia para agir como quem adquiriu a consciência de que a atividade física é essencial para uma vida mais plena e, possivelmente, mais longa.

Comecei a correr maratonas quando fiz 50 anos. No início, quis provar a mim mesmo que se conseguisse completar 42 quilômetros, não me sentiria velho. Continuo a corrê-las com o mesmo objetivo e para evitar as condições patológicas que afligem homens da minha idade, manter a vitalidade para trabalhar e para as atividades que sempre tive.

A disciplina que dediquei aos treinamentos para ter corrido cerca de 25 maratonas permitiu que eu completasse a última delas em outubro passado, aos 79 anos. Apesar de reconhecer o privilégio de chegar a essa idade nessas condições, quando muitos de meus contemporâneos já se foram, enquanto outros ainda resistem, mas cheios de limitações, não estou satisfeito.

Você, leitora, vai me achar ridículo, absurdo, mas carrego a frustração de que o excesso de trabalho, a indisciplina e a preguiça nunca me permitiram fazer uma prova bem preparado.

Chego ao fim destruído, com ímpetos de deitar no asfalto e chorar de exaustão. Em 2023, farei 80 anos, pretendo treinar com a regularidade exigida para cruzar a linha de chegada ainda com disposição para continuar correndo. É, talvez eu seja ridículo mesmo.

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