Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

Trote deveria ser proibido por maltratar quem deveria ser acolhido

Faculdades de medicina precisam dar fim à complacência, porque os adultos sabem o que estão fazendo nessa brincadeira

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Passou da hora de acabarmos com essa baixaria antiquada. Todo ano, os estudantes que ingressam nas faculdades passam por essa humilhação ridícula e violenta, fruto da boçalidade, doença contagiosa.

O último episódio foi protagonizado por alunos do curso de medicina, num jogo de vôlei em que participavam suas colegas de faculdade. Provocaram revolta as imagens daqueles moleques abaixando as calças para encenar um ato de masturbação coletiva. Segundo dizem eram calouros que obedeciam às ordens de veteranos tão estúpidos quanto eles.

O objetivo do trote é impor ao novato uma posição subalterna para submetê-lo aos caprichos dos já iniciados, tributo a pagar para entrar no grupo. O calouro aceita a experiência vexaminosa por considerá-la parte do ritual para ser aceito pelo grupo. O consolo é que no ano seguinte ele irá à forra, perpetuando a baixaria.

Como toda imposição autoritária praticada em grupo, a escalada da violência é inevitável nessas ocasiões. No meio de brincadeiras aparentemente inocentes, como impedir que um veterano imbecil seja mais agressivo? Como evitar a repetição de cenas que mais parecem sessões de tortura? Está certo fecharmos os olhos quando meninas e meninos feridos vão parar no pronto-socorro, como tantas vezes acontece?

Vemos de perfil o busto de uma moça que está sendo humilhada em um trote violento. Por trás dela, alguém de botas longas coloca o pé sobre sua cabeça enquanto pela frente alguém coloca comida de cachorro sobre sua cabeça. Ao fundo, temos a onomatopéia de muitas risadas. A cena é triste e vemos em destaque por lágrimas azuladas, que a moça chora.
Ilustração de Líbero para coluna de Drauzio Varella de 5 de outubro de 2023 - Folhapress

Na faculdade em que estudei, um rapaz morreu afogado porque foi jogado numa piscina, mesmo advertindo os colegas de que não sabia nadar. Alguém foi punido pelo crime?

Numa comemoração no clube dos alunos, uma menina foi estuprada por colegas, sem que ninguém fosse preso. Teria havido essa leniência se os estupradores fossem pretos numa festa no Capão Redondo?

No passado, o trote ocorria apenas no primeiro dia de aula. Em muitas escolas, hoje, dura meses. A masturbação dos moleques na quadra esportiva ocorreu em abril, dois meses depois do início das aulas.

No interior, em que muitos moram em "repúblicas", os abusos não se limitam ao campus universitário, são entregues a domicílio no dia a dia.

Embora essa praga esteja espalhada pelo país inteiro nos cursos mais variados, a repercussão é maior quando envolve estudantes de medicina. A sociedade fica revoltada ao tomar conhecimento da selvageria e de atos indecorosos, quando praticados por aqueles que deveriam ser preparados para aliviar o sofrimento humano, a grande razão de existir da nossa profissão.

Que médico será esse que violenta os mais novos? Que não respeita as colegas de curso?

Não podemos esquecer que o médico tem acesso ao corpo do outro, relação interpessoal que exige respeito máximo. O estudante de medicina deve ser formado para assumir essa responsabilidade desde o dia em que põe os pés na sala de aula. Os professores têm o dever de prepará-lo para aprender os aspectos éticos de uma profissão que não é apenas uma ciência, mas também uma arte sem a qual formaremos maus profissionais, ainda que conhecedores das técnicas.

Essa tarefa é cada vez mais premente, a farra da abertura de faculdades de medicina dos últimos dez anos deu ao Brasil o título de vice-campeão mundial em número de faculdades de medicina. Temos mais escolas que os Estados Unidos e a China, que tem mais de 330 milhões e 1,4 bilhão de habitantes, respectivamente.

Com o descaso e os baixos salários com que a carreira universitária tem sido tratada, não temos professores capacitados para formar tantos alunos. Só a metade dos diplomados encontrará vagas para os anos de residência, os demais serão jogados no mercado de trabalho, ou seja, os mais despreparados serão aqueles que nos atenderão quando sofrermos um infarto noutra cidade ou num acidente na estrada.

As faculdades de medicina têm de dar fim à complacência diante do trote. Não é uma brincadeira de crianças, os adultos que abusam dos mais novos sabem muito bem o que estão fazendo. Dizer que o trote aconteceu fora do campus não serve de desculpa.

Medidas educativas são absolutamente necessárias, mas não suficientes: é preciso proibir e punir essa indecência que maltrata justo os que deveriam ser acolhidos de forma civilizada no ambiente universitário.

Pelas características humanitárias da profissão, as faculdades de medicina devem ser as primeiras. Talvez o exemplo ajude outras escolas a dar um fim nessas agressões gratuitas.

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