Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella
Descrição de chapéu Natal réveillon

O que me faltava era a compreensão do que seria um Ano-Novo próspero

'Feliz Natal', ouvia já na infância e sabia o significado, mas a prosperidade para mim devia ser um ano sem vendas a fiado

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"Feliz Natal e próspero Avo-Novo", ouvia já na infância. "Feliz Natal" eu sabia o que significava, Ano-Novo também, mas próspero?

Num tempo em que as crianças dos bairros operários ganhavam presentes apenas duas vezes por ano, a véspera do Natal era o mais longo dos dias. Acordava cedo, tomava café e me juntava à molecada para jogar bola na calçada da fábrica em frente de casa. Quando a partida terminava, inventávamos uma sucessão de brincadeiras à espera de que escurecesse logo.

Um homem é quase soterrado pelo gigantesco pacote de presente natalino que carrega. A corda que amarra o presente está também em volta do seu pescoço e é puxada por uma mão enorme que quase sai do quadro. O quadro transmite enorme pressão.
Ilustração coluna Drauzio Varella de 27.dez.2023 - Libero/Folhapress

No início da noite, enquanto tomávamos banho, os presentes apareciam por encanto em baixo da árvore armada na sala, iluminada com luzinhas coloridas. Para recebê-los, entretanto, havia que aguardar a última badalada da meia-noite no carrilhão do relógio.

E, aflição atroz, rezar para que terminasse logo a prece que meu pai fazia em agradecimento por tudo o que Deus nos dera e pelas recompensas que receberíamos quando nos fôssemos deste vale de lágrimas, caso levássemos vida honesta e ajudássemos os necessitados.

A noite do Ano-Novo passávamos na casa de uma das avós. A família ficava em volta do rádio na torcida para que um brasileiro ganhasse a São Silvestre, corrida pelas ruas de São Paulo na noite do dia 31, desejo frustrado ano após ano.

O que me faltava era a compreensão do que seria um Ano-Novo próspero. Para mim, devia ser um ano sem vendas a fiado, como mostrava o quadro com uma charge pendurado atrás da caixa do empório da esquina. O quadro era dividido em duas metades, na da direita um homem esquálido e doentio com um cigarro amassado entre os lábios, ao lado de uma mulher mais magra e mais doentia do que ele, com uma criança maltrapilha nos braços. Ao fundo, prateleiras quase vazias numa das quais um rato encarava o observador.

Na outra metade, a figura de um homem de abdômen avantajado, bochechas rechonchudas, calça de listas pretas e cinzas com suspensórios, fumava um charuto na cadeira de balanço. Junto a ele, uma loira de vestido decotado e seios fartos sorria apaixonada. Na parte inferior da imagem, à direita, os dizeres: "Eu vendia a fiado". À esquerda: "Eu só vendia à vista".

Na adolescência comecei a me desentender com as festas de fim de ano. Achava absurdo o desespero das pessoas atrás das compras e, sobretudo, a estética do Papai Noel, das renas, das lojas empetecadas com guirlandas de mau gosto e da abominável árvore de plástico com bolas de cores desconexas e flocos de algodão imitando neve em pleno verão insuportável.

Com o nascimento dos filhos, sobrinhos e netos renovei a esperança de recuperar o encanto natalino da infância. Infelizmente, as compras obrigatórias de presentes e os preparativos para a ceia, deixaram os dias que antecederam os meus natais mais próximos do inferno de Dante, do que do menino na manjedoura.

Nem o encantamento da criançada sobreviveu, porque o consumo passou a exigir que cada familiar presenteasse uma por uma. Os presentes são colocados em volta da árvore, em pilhas capazes de soterrar uma pessoa se acaso desabarem. Ansiosas, as crianças mal acabam de abrir um pacote já desembrulham o seguinte. Quando a festa acaba estão com sono, enfadadas, nem se lembram do que ganharam.

Passada a euforia, vem a urgência para organizar o Réveillon, data que provocará uma explosão de alegria e otimismo, ainda que falte a prosperidade. Surge um frenesi para viajar, mesmo que as estradas virem estacionamentos, as rodoviárias e aeroportos fiquem abarrotados de sofredores que ao chegar no destino enfrentarão filas nas padarias, nos supermercados e nos restaurantes, desconfortos que serão superados pelos cortes de água e luz e pelos enxames de mosquitos.

Mas tamanho sacrifício será compensado pela tal explosão de alegria que irromperá pontualmente à meia-noite do dia 31. Se ela não vier por conta própria, o álcool resolverá o problema. Quando clarear, com as calçadas cheias de garrafas vazias e de vômitos, você irá para a cama. Nos dias seguintes, o suplício da volta.

Prezada leitora, você dirá que sou mal humorado, que só vejo o lado ruim das festividades. Não é verdade, há três coisas para as quais dou imenso valor nesta época: estar com as pessoas que mais amo, São Paulo sem trânsito e, acima de tudo, o alívio que me traz o amanhecer do 2 de janeiro. Um próspero Ano-Novo para você.

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