Fabrício Corsaletti

Poeta e cronista, autor de "Esquimó" e "Perambule".

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Fabrício Corsaletti

Fim da aventura no centro

Como contei na crônica anterior, depois de tomar um café no centro da cidade e de fumar um cigarro imaginário à sombra dos chapéus-de-sol de um calçadão, topei com uma placa, pendurada sobre a porta aberta de um sobrado decadente, onde se lia:

M. LUZ, VIDENTE
A VERDADE É UMA HISTÓRIA
QUE VOCÊ TEM O DIREITO DE CONHECER

Encafifei com o nome abreviado (por que “M. Luz” ressoava de forma tão agradável no meu inconsciente?), criei coragem e entrei.

Era uma sala escura, mal iluminada pelas três velas de um castiçal comprido posto ao lado de uma escada de madeira que levava ao andar superior. Na parede da escada, um grafite: uma fila de esqueletos subindo um morro que ia dar num céu em chamas. Que merda é essa?, pensei.

Achei melhor cair fora dali, mas a curiosidade não me deixou voltar atrás. Criei coragem pela segunda vez no dia (como é esquisita essa expressão, “criar coragem”) e, sem tocar no corrimão seboso, subi devagar aqueles degraus rangentes, enquanto o bochicho da rua ia se apagando nos meus ouvidos.

Ilustração da coluna de Fabrício Corsaletti
Romolo

Quando cheguei lá em cima, pensei que estava sonhando, na medida em que todo sonho é também um pesadelo. Pelo cômodo claro e espaçoso de tacos pintados de lilás, centenas de objetos e penduricalhos indianos, ou ciganos, ou hippies de milésima geração, tinham sido acomodados de maneira mais ou menos aleatória, formando o que a mãe de um amigo meu chamava de PB, isto é, puta bagunça.

Se o leitor não gosta de listas, pode pular este parágrafo; caso contrário, eis o que lembro de ter visto: uma estátua de Buda em tamanho natural (seja lá qual tenha sido o tamanho natural de Buda), uma escultura maia (ou asteca?) de um sol-calendário, um bosque de arvorezinhas de jaspe vermelho, um bandolim sem cordas, um pôster de Osho, a capa de um LP do Genesis, caveiras de Durepox, um livro de Saussure e outro de Chomsky etc.

Sentada no centro de um tapete verde-abacate, em posição de lótus, de olhos fechados, descalça e vestindo uma bata branca, M. Luz, ou alguém que só podia ser M. Luz, meditava. Seu cabelo preto, preso num coque descuidado, brilhava como gelatina.

Me aproximei, meus sapatos me delataram, ela abriu os olhos e então soltou uma gargalhada que me fez tremer inteiro por dentro. Por um instante não pude acreditar. Mas logo não tinha mais dúvidas: M. Luz não era ninguém menos que minha amiga Mariana Luz Pereira Bastos, ou Mari Manguaça, ou ainda MM, desaparecida desde 2003, quando embarcou numa viagem mística pelo Vale Sagrado peruano.

(Continua na próxima coluna.)

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