Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Fernanda Mena

Seres humanos são animais

Troque duas palavras na elaboração de sua empatia com os animais para entender o princípio fundamental dos direitos humanos

Eleanor Roosevelt segurando a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1949
Eleanor Roosevelt segurando a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1949 - ONU NewsMedia

Nesta semana, a Declaração Universal de Direitos Humanos completa 70 anos.

Na semana passada, tratei do triste caso do vira-lata Manchinha, mortalmente ferido a pauladas por um segurança do Carrefour em Osasco, na Grande São Paulo, para lembrar do desprestígio dos direitos humanos no Brasil.

O segurança, ao que parece, cumpria ordens de "se livrar" do animal, e sabe-se lá porque interpretou isso como extermínio, gerando justa comoção e movimentação da Justiça e do Senado.

A ironia é que, com isso, na semana do aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, debateu-se mais os direitos dos animais. E a coisa também não anda nada boa para a nossa espécie bípede.

Volto ao caso porque ele é ainda mais ilustrativo quando pensamos na máxima atual de que "direitos humanos são para humanos direitos".

Não existe definição para humano direito consensual e sacramentada. Ela depende, portanto, dos olhos de quem a vê.

Que o digam, por exemplo, os milhares de judeus mortos no Holocausto porque eram vistos pelo nazistas como "vermes" responsáveis pela ruína do povo alemão.

Ou os tutsis, em Ruanda, quase exterminados pelos hutus, que os chamavam de "baratas" e que a eles atribuíam suas desgraças.

Ou que o diga ex-cobrador Luiz Alves de Lima, apontado por dois médicos e pelo então senador Magno Malta como estuprador da própria filha de dois anos, torturado na prisão e depois inocentado de qualquer crime na Justiça.

Todos eles foram vistos, por alguém, num determinado contexto, como humanos que não eram direitos. E essa percepção justificou todo o tipo de barbaridade.

O vira-latas do Carrefour poderia ser direito para uns e não para outros. Mas a defesa da vida do cachorro e de sua proteção contra maus-tratos está fundamentada numa ética que valoriza o animal pelo simples fato de ele existir.

Não interessa se era direito ou esquerdo. Não interessa se roubou o lanche do segurança ou o ameaçou com os dentes. Ninguém quer saber se ele atentou contra outro vira-latas ou se matou um poodle numa briga. Se mordeu uma velhinha ou uma criança. O cão pode ter feito coisas muito feias, mas elas parecem menos relevantes que um princípio maior: é errado maltratar animais.

É isso o que sustenta a indignação de pessoas tão distintas como a ativista Luisa Mell, o deputado estadual paulista Fernando Capez (PSDB) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que costuma chamar defensores de direitos humanos de "vagabundos".

​Mas pegue o penúltimo e o antepenúltimo parágrafos, troque “vira-latas do Carrefour” e “cachorro” pela palavra “pessoa”. Substitua o termo “animal” por “seres humanos”, devidamente flexionados no singular ou no plural, e leia novamente.

A pessoa poderia ser direita para uns e não para outros. Mas a defesa da vida da pessoa e de sua proteção contra maus-tratos está fundamentada numa ética que valoriza o ser humano pelo simples fato de ele existir.

Não interessa se era direito ou esquerdo. Não interessa se ele roubou o lanche do segurança ou o ameaçou com os dentes. Ninguém quer saber se ele atentou contra outra pessoa ou se matou um poodle numa briga. Se mordeu uma velhinha ou uma criança. A pessoa pode ter feito coisas muito feias, mas elas parecem menos relevantes que um princípio maior: é errado maltratar seres humanos.

Quem sabe agora, septuagenária, a Declaração Universal dos Direitos Humanos consiga, sem tantos enviesamentos, ser melhor compreendida, ainda que seja a reboque de outro tema sensível como os direitos dos animais.

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