Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu
Rússia

Sucumbi à quarta onda da Covid, eu e parece que toda a torcida do Flamengo

Eu tinha medo de dormir e aprendi a me acordar dentro do sonho, quando pressentia a virada do enredo

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O meu caso ocorreu numa filmagem. Testes de antígeno na chegada, todos negativos, só que um de nós positivou durante o dia e, como ator não usa máscara para trabalhar, voltei para casa em má companhia.

Não foi a primeira e, ao que tudo indica, não será a última vez. Vacinemo-nos e acomodemo-nos.

A Covid 2022 é uma licença do mundo. Nada se espera do doente, que não o isolamento e a cura. E a reclusão deve ser mesmo obrigatória, porque o corpo se transmuta numa usina de expelir perdigotos.

É abdução. Espirros pornográficos, embebidos numa coriza Foz do Iguaçu, baba alienígena que a tudo adere e contamina. Quando não mata, a Covid é uma prima grossa da gripe.

Ilustração dividida em duas ambientações. No lado esquerdo, há um fundo preto com uma figura azul com linhas cruzadas e, no lado direito, há um lugar iluminado com uma árvore, flores amarelas e laranjas flutuando e grama. Três pessoas estão andando em direção ao lado iluminado e a primeira está bem na divisão entre os dois espaços.
Ilustração publicada em 9 de junho de 2022 - Marta Mello

Em dezembro de 2021, a pena foi de duas semanas em regime fechado, sendo que ainda cumpri três meses de perda de olfato e risco de trombose. Passou.

Agora, juram os doutos, entrarei no semiaberto em uma semana, isso se a fatiga crônica, a confusão mental e a parada cardíaca não alongarem, ou encurtarem, o processo.

Padecer de Covid é como estar vivo nos dias de hoje, você se sente mal o tempo inteiro, mas é suportável, se não pensar em demasia no que ainda pode acontecer.

AVC, cardiopatia, golpe, guerra, chacina, cataclismo climático. As ameaças concretas são tantas, e de tal magnitude, que é preciso ignorá-las para levantar da cama.

Não prego a alienação, mas aconteceu comigo. Foi depois da invasão da Ucrânia, desenvolvi uma aversão preocupante ao noticiário, aos debates, prognósticos, análises e previsões.

Sêmele, mãe de Dionísio, foi pedir a Zeus que se mostrasse a ela em todo seu esplendor e morreu torrada pela irradiância olímpica. É como eu me sinto, às vezes, diante da televisão, cozida pelas más novas. Não culpo a imprensa, são os fatos mesmo que estão de arrepiar.

Sem meios para barrar Putin, demover um terço da população do país da sua intenção de voto, e impedir furacões e pragas, acomodei-me a esse não futuro do presente. Fui levando, até perceber que não sonhava mais. Não se desiste do porvir impunemente. Já escrevi sobre a minha pobreza onírica aqui, que melhorou, sem voltar a ser o que era.


"Oráculo da Noite", de Sidarta Ribeiro, faz uma breve história do sonho e da ciência do sono. A vantagem evolutiva do sonhador, explica o neurocientista, é a de experimentar sentimentos, planejar estratégias e medir riscos no ambiente seguro da mente.

O corpo inibe as sinapses de movimento, ativa as da memória e o cérebro se ocupa de treinar, de enfrentar, sentir e calcular as probabilidades de êxito ou fracasso na caça, no amor, no perigo.

César, Touro Sentado, Luther King e Constantino sonharam grande e pesado.

O sonho, portanto, como acreditavam os antigos, aponta para perspectivas futuras. Mas e quando não se enxerga nenhuma, ou as que estão à vista, durante a vigília, se deseja evitar? Adoece-se. Não sonhar, dormindo e acordado, é sintoma grave.

O sonho exige silêncio e introspecção, artigos raros desde que nos ligaram em rede. Sidarta pensou que a indigência onírica fosse fato consumado na maturidade, até desligar do mundo e, acampado à beira rio numa floresta erma, ser agraciado com um sonho jovem e lisérgico.

Fui uma criança dada a pesadelos traiçoeiros, tramas que começavam bem e, do nada, guinavam para o horror.

Eu tinha medo de dormir e aprendi a me acordar dentro do sonho, quando pressentia a virada do enredo. A
técnica espantou os maus espíritos e embalei um longo período de paz sonífera, até notar o apagão recente. O sonho lúcido é um talento que abandonei na infância e gostaria de recuperar.

Isolada no quarto, na lerdeza do dia acamado, com o raciocínio oco e um torniquete de dor de cabeça a me pressionar os miolos, durmo e deliro. Peço perdão pelo vago da crônica. Culpo a moléstia e deixo de objetivo a pergunta: Você, leitor, como tem sonhado?

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