Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Vira voto de verdade acontece fora da influência de artistas e escritores

Comparecerei à urna certa da minha insignificância, na torcida para que o Brasil de Roberto Jefferson não saia vitorioso

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Domingo se aproxima, com as atenções voltadas para o vira voto.

No Rio, artistas gravaram o "Lula Lá", em resposta ao apoio de meias duplas sertanejas ao candidato do PL. A gravação gerou análises em torno da inutilidade da declaração de voto da classe. De fato, tirando o indignado depoimento de Xuxa Meneghel sobre o "pintou um clima", pouca diferença fez o "L" com o livro, ao qual aderi, ou o coral da campanha em "L" dos colegas. Do fundo da própria bolha, cada um faz o que pode.

O vira voto de verdade está ocorrendo entre brasileiros que não relacionam José Leôncio ao Marcos Palmeira, e dão preferência às sagas bíblicas, no lugar dos folhetins da hora.

Ilustração mostra duas mãos sobre fundo branco: à esquerda, mão colorida fazendo o gesto da letra L, abrigando a palavra "Civilização"; à direita, mão cinza fazendo o gesto de "arminha", apontada para baixo, abrigando a palavra "Barbárie".
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres - Marta Mello

Há mais de 20 anos, D. é obreira da Universal e segue o evangelho da TV Record. A igreja deu a ela um sentido de fé e pertencimento. Como se possuísse bola de cristal, eleição vai, eleição vem, D. acerta o placar dos vencedores no Rio de Janeiro. Em 2018, ela fechou o seu voto em Wilson Witzel no culto de sexta-feira. Na quinta, o juiz não era ninguém; no domingo, estava eleito governador do estado.

No segundo turno de agora, a prefeitura do município onde D. tem casa própria se alinhou com a oposição. Na falta de uma articulação mais fervorosa do andar de cima, o pastor liberou os fiéis para votarem
em quem bem entendessem.

O livre pensar acirrou os ânimos e o templo se dividiu entre os que não creem no mito armamentista e os que temem a dissolução dos valores da família cristã. Se tem um lugar onde o vira voto está fervendo é no bairro de D., linha de frente da resistência do Estado laico.

Em São Paulo, o vira voto da extrema direita volver promoveu a disparada de Tarcísio. Confesso que meu ressentimento de carioca falida sentiu uma ponta reprovável de vingança, ao ver paulistas prósperos apostarem no fracassado modelo fluminense de segurança pública, o do tiro na cabecinha, lançado pelo impichado Wilson Witzel, voto de D. em 2018.

Se você leu até aqui, é porque eu não preciso virar seu voto. Argumentos não faltariam: o racismo, a misoginia, os retrocessos na educação, a condução da pandemia, a diminuição da cobertura vacinal do país, o amor às armas, o ódio à ciência, ao STF, à cultura, ao bom senso e, por fim, as revelações de
Sergio Moro de abril de 2020.

Ao deixar o Ministério da Justiça, o ex-juiz paranaense trouxe à tona a reunião da boiada do Ricardo Salles e das trozobas e hemorroidas do capitão, levantando suspeitas sobre a intenção do presidente de interferir na cúpula da Polícia Federal.

Disse Moro na ocasião: "É certo que o governo na época [do PT] tinha inúmeros defeitos, aqueles crimes gigantescos de corrupção […], mas foi fundamental a manutenção da Polícia Federal para que fosse feito o bom trabalho, seja de bom grado ou por pressão da sociedade, mas isso [a autonomia] foi mantido".

Aperto, portanto, o 13, porque Lula não aparelhou a PF nem durante a investigação que o levou injustamente à cadeia. É ou não é uma razão e tanto? Razão... Afeito a paixões arcaicas, crenças religiosas e com raízes históricas aprofundadas, o vira voto da reta final não atende ao juízo.

Minha família, assim como a de Messias, descende de imigrantes italianos que cruzaram o Atlântico na virada do século 19 para substituir a mão de obra recém-liberta e, com o tempo, embranquecer o Brasil. Sem sofrer do "defeito de cor" de Luiz Gama e, dependendo da região, com o direito adquirido a um pedaço de terra para plantar, muitos desses imigrantes conseguiram vencer a linha da miséria e ascender socialmente em poucas gerações.

Nos anos 1930, um chinês fugido da China de Mao Tsé-Tung convenceu uma colônia de descendentes italianos do Rio Grande do Sul a trocar o plantio de trigo pelo da soja, cujas sementes o homem trazia na bagagem. Ao longo do século 20, a soja foi sendo adaptada a solos cada vez mais ao norte, até formar o cinturão do agronegócio que, hoje, se estende dos Pampas ao Maranhão. A explosão agrícola desviou o eixo econômico do país para o interior, chutando para corner o litoral maravilha.

Note, nada se compara à escravidão, mas esses europeus pobres dormiram em senzalas mal reformadas, ralaram para quitar dívidas impagáveis em contratos análogos ao do trabalho escravo e não carregam nas costas nem a herança nem a culpa pelo tráfico negreiro dos portugueses.

Bahia e Paraná votam por motivos díspares.

Nesse embate de civilizações, tendo Deus e o Diabo como árbitros, não tenho poder divino nem material para convencer ninguém de coisa nenhuma. Comparecerei à urna certa da minha insignificância, na torcida para que o Brasil de Roberto Jefferson não saia vitorioso dessa eleição.

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