Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Fui ensinada, desde o berço, que o golpe é certo e é preciso estar preparada

Maré contrária engolfou estados, Senado, Câmara e assembleias nas eleições, e caminho para o fim do mês apreensiva e calma

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"Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas." (Fernando Pessoa)

Tenho um amigo que se converteu à Grécia. A "Ilíada" e a "Odisseia" são o Velho e o Novo Testamentos dele. Amante dos fortes, H. comunga da ideia de que a esperança é a expressão máxima da fraqueza humana. Filha da Cassandra de São Cristóvão, tendo a concordar com ele. Cresci avessa a utopias e fui ensinada, desde o berço, que o golpe é certo e é preciso estar preparada.

Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres
Marta Mello

Certas datas e ocasiões, no entanto, agem sobre a vontade, a razão e o estoicismo, expondo os calcanhares às intempéries. Naquela manhã de sol raro, acordei cedo para a votação. Conforme o momento da urna se aproximava, foi me crescendo uma alegria tola, a certeza cósmica de que o vento soprava a favor. Eu não queria, não corri atrás, mas aconteceu.

O otimismo me fez companhia na fila pouca, na biometria e no canto privado. Quando apertei o último botão da cola, uma emoção cívica, súbita e incontrolável, tomou-me o peito. Era o fim do ciclo de provações, quis crer. Passado o transe, já a caminho do carro, notei que a rua se dividia entre os camisa Flamengo vermelho e preto, da Rocinha, e os seleção canarinho, da Barra da Tijuca. Meio a meio, eu diria. Foi o primeiro sinal de baixa.

Na avenida Niemeyer da volta, ladeando o Vidigal, os flamenguistas coloriram o acostamento até sumirem de vista, dando lugar aos patriotas do calçadão do Leblon. Pouco bebi no almoço, disparei memes na sobremesa e liguei a tevê para aceitar o destino. O que aconteceu depois eu não lembro... Não me lembro muito bem. Uma maré contrária engolfando estados, Senado, Câmara e assembleias. Não é passageiro, pensei, não é fase, somos isso mesmo que se apresenta. Rapaz...

A esperança piorou o caldo.

Não tiro o peso dos votos majoritários conferidos à oposição. Não vai ser fácil para ninguém a convivência. É como brigar de tapa na reunião de condomínio e ter que aguentar o constrangimento de compartilhar a parede, o piso, o teto e as áreas comuns do prédio com uma legião de desafetos. Partir o país em dois não é solução, sumir com metade da população, tampouco, o jeito vai ser continuarmos unidos pela incompatibilidade mútua.

Na rodinha da jeunesse dorée carioca, o senador Romarinho mil gols! foi unanimidade entre a galera. Bolsa em alta, inflação em baixa e a vida a mil. A taxação sobre fortunas e dividendos afasta os jovens patrícios das opções em vermelho. Se o funil apertar, os american boys do colégio bilingue cursando administração, que pressionaram o nulo no primeiro pleito, farão a direita radical volver no segundo, sem piedade.

Em contraste, no bar da esquina da universidade do centro, estudantes afogam as mágoas do encolhimento das bolsas de mestrado e doutorado, abraçados ao corpo docente, que enfrenta cortes nas verbas de custeio acadêmico. É o abismo entre Paraná e Bahia, é siri com Toddy. Para piorar, a proximidade do dia 30 acirra os ânimos, abrindo a porteira para os extremados.

Uns xingam, outros cospem, muitos chutam e alguns apelam. Cássia Kis fez uma convocação aos devotos de Nossa Senhora para uma reza conjunta do rosário, no dia 12 de outubro, na basílica de Aparecida, a fim de expurgar a ameaça comunista profetizada pela Virgem Maria, na sua aparição em Cimbres. No campo inverso, Flor Pistola é aconselhada a desistir do desabafo lascivo nas redes, para não munir grupos de zap contrários.

Porque de Weintraub e Roberto Alvim, de Pazuello, Damares e do vilão de novela Ricardo Salles nada se espera que não o desatino. A insensatez conta a favor nesses casos, é capital eleitoral. Mas dos progressistas de centro e de esquerda exige-se, neste momento, a moderação de um Gandhi, mesmo debaixo de sopapo. Não é tarefa fácil.

Na "Ilíada" do meu amigo H., os deuses, volta e meia, se precipitam das alturas para fomentar guerras, mortes e possessões. A carnificina favorece ora os gregos, ora os troianos, num zero a zero periclitante. Cabe aos homens suportarem. É o caso agora.

Curada da euforia incauta do primeiro domingo de outubro, caminho para a bifurcação do fim do mês
apreensiva, contrita e calma.

"Existe uma previdência especial até na queda de um pardal. Se é agora, não será depois; se não for depois, é que vai ser agora; se não for agora, será a qualquer hora. Estar preparado é tudo." ("Hamlet", ato 5, cena 2, William Shakespeare)

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