Meu colega Hélio Schwartsman tocou em um ponto esta semana: se não existe a chamada fila única para o câncer, que mata pobres desassistidos quando há vagas na rede privada, por que deveríamos adotá-la na epidemia da Covid-19?
Afinal, os mais ricos pagam planos de saúde justamente para ter tratamento “diferenciado”; e bancam os impostos que mantêm o SUS.
Nada mais justo que cada um fique na sua, certo?
As coisas complicam se pensarmos na chamada regressividade tributária brasileira. Ricos e pobres que comprarem uma cesta básica pagarão o mesmo em impostos, embora o comprometimento da renda total seja muito diferente.
Isso porque mais da metade da carga tributária incide sobre o consumo de bens e serviços. Apenas 25% vêm dos salários; 18%, da renda; e 3,9%, de propriedades. São proporções muito desequilibradas se comparadas a países mais igualitários.
A coisa piora se olharmos para a distribuição das UTIs pelo país, onde estados com mais funcionários públicos em proporção à população têm muito mais leitos privados do que o SUS.
Na média nacional, o SUS tem 1,4 leito por 10 mil habitantes. Na rede privada, são 4,9 por 10 mil segurados. Mas em Brasília, que concentra a elite do funcionalismo, há 1,6 leito por 10 mil no SUS e 11,6 por 10 mil na rede particular.
Estados com mais empregos públicos, como Acre, Amapá e Rondônia, também têm mais leitos privados do que o SUS —entre outros motivos, porque os funcionários públicos ganham, em média, quase o dobro daqueles na iniciativa privada em cargos equivalentes, segundo o Banco Mundial.
O funcionalismo, portanto, tem dinheiro para planos de saúde —pagos, em última instância, pela carga tributária que incide mais sobre os pobres.
Em plena epidemia, os políticos querem aprofundar essa desigualdade.
Entre 2004 e 2018, segundo o Ipea, os servidores estaduais tiveram aumentos médios reais (acima da inflação) de 80%. A remuneração média deles é de R$ 4.275 --variando de R$ 3.666 (professores) a R$ 18.988 (nas defensorias públicas).
Como comparação, o rendimento mensal no setor privado formal é de R$ 2.200; dos informais por conta própria, R$ 1.312. No setor público, há estabilidade; no privado, que vem demitindo e cortando salários, não.
Mesmo assim, em votação na quarta (6), foi aberta a brecha para novos reajustes nos próximos meses, que poderão consumir parte da ajuda de R$ 125 bilhões a governadores e prefeitos durante a crise.
Dando mais um rasteira no ministro Paulo Guedes, foi o próprio presidente Jair Bolsonaro, agora em “modo sobrevivência”, quem abriu a porteira em negociação com o chamado centrão.
Isso acabou pode reduzir de R$ 130 bilhões para R$ 42 bilhões, até o fim de 2021, a economia que a pasta de Guedes esperava congelando os salários dos servidores.
Bolsonaro ainda tem a chance de vetar o dispositivo que autoriza os aumentos —que só reforçariam o apartheid existente no Brasil.
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