Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

O vírus do preconceito

Matéria sobre brasileiro infectado associada à foto de casal chinês causa ruído

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"O primeiro caso de coronavírus no Brasil é de um brasileiro que veio da Itália. A foto da matéria são dois asiáticos. Porra, Folha".

Foi assim que, pelas redes sociais, um leitor criticou a escolha de uma foto que ilustra uma reportagem publicada pela Folha na terça-feira (25).

Seis figuras humanas estão dispostas lado a lado. A primeira tem uma balão de pensamento com o desenho de um vírus e a informação vai sendo passada de um a um como um telefone sem fio. Na extrema direita, a última pessoa tem um balão de fala com o desenho de um grande vírus.
Carvall

Embora o texto aborde o primeiro caso da doença identificado no país—o de um brasileiro que voltou de uma viagem de alguns dias à Itália—, a imagem escolhida para acompanhar a matéria é a de um homem e uma mulher chineses.

Segundo o Manual da Redação, as imagens (fotos, vídeos e infográficos) não devem ser encaradas como mero adereço. Elas devem ser informativas, pois funcionam como uma porta de acesso ao jornal e ampliam a visibilidade do conteúdo nas redes sociais e nos mecanismos de busca.

A foto em questão cumpre essa função: ela retrata um membro de uma equipe médica chinesa que se despede de sua família para ajudar nos esforços de controle do coronavírus.

A imagem também chama a atenção por ser comovente. Na cena, a mulher parece emocionada.

A questão é que, desde que se começou a ter um volume maior de notícias sobre o surto, leitores, telespectadores e internautas vêm sendo bombardeados com milhares de imagens de asiáticos associadas aos avanços da doença.

O que, no começo, parecia inofensivo—afinal de contas, o surto originou-se na China—passou a alimentar uma fogueira poderosa: a do preconceito, que sempre ganha força em meio a um cenário de medo e de ignorância.

Nesse calor, o outro vira alvo de demonstrações explícitas de racismo

Passa a não interessar mais se a pessoa esteve ou não na China ou nos países sob alerta das autoridades de saúde: se tem traços asiáticos, é encarada como um risco—algo que, mesmo sem intenção, é reforçado quando um texto sobre um brasileiro que se infectou na Itália é acompanhado de uma foto de um casal chinês.

A associação de epidemias a um grupo étnico, uma nação ou uma determinada comunidade é algo recorrente na história da medicina.

A sífilis, por exemplo, já foi conhecida como mal italiano, francês, americano, entre outros. O vírus HIV já foi associado diretamente aos homossexuais, fomentando não só dor e preconceito, mas atrasos no esclarecimento da doença e em sua contenção.

O que talvez seja novo é a maior mobilidade das pessoas pelo mundo e o fluxo rápido da (des)informação.

Para outro leitor, seria "hora de o mundo exigir que a China instrua seu povo a se alimentar de outra forma, pare de comer animais silvestres de todas as espécies e insetos, evitando assim epidemias".

A origem do coronavírus ainda não foi totalmente esclarecida. A própria ideia de que a China, país mais populoso do mundo e incrivelmente diverso, tem uma dieta excêntrica é um preconceito.

Na internet, uma das imagens que circulam é a de um mercado, supostamente localizado na China, que vende todo tipo de animal. Agências de checagem verificaram que o mercado fica na Indonésia, e que a imagem é anterior à epidemia.

Coisas das redes sociais? Não só.

Na sexta-feira (28), era possível ver uma comentarista de um canal de notícias dizer resumidamente o seguinte: que a China mostra seu lado avançado diante dos esforços de retomada rápida de sua indústria, isso, segundo ela, após expor o lado mais atrasado, representado pelos seus mercados de animais. 

Sem nenhuma contextualização, é impossível não encarar uma frase dessas como fruto, no mínimo, de desconhecimento e preconceito.

Não surpreende que asiáticos enfrentem olhares de desconfiança e passem por medo e humilhações. E que aquele primeiro leitor tenha se incomodado com a foto incluída na matéria.

Ainda que agregue informação, há o aspecto simbólico da imagem: a conexão entre o vírus e os asiáticos, reforçando o preconceito. 

Um bom modo de enfrentar a contaminação pelo preconceito é oferecer informação—algo que o Ministério da Saúde e a imprensa de modo geral vêm fazendo bem.

A Folha vem produzindo boas reportagens sobre o assunto, abordando inclusive os dissabores de brasileiros descendentes de asiáticos.

Não é a primeira vez que uma pandemia dá vazão aos nossos mais baixos instintos nem será a última.

Não há culpados, mas vítimas e uma maioria sedenta por informação.

Na quinta-feira (27), a capa da Folha trouxe imagens de pessoas usando máscaras no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em partida da Champions League, em Madri, na torre Eiffel e na praça São Pedro, na Itália. A notícia é que já há mais casos novos de coronavírus fora da China do que no país. Esse é o caminho para uma boa cobertura.

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