Gabriel Kanner

Presidente do Instituto Brasil 200, é formado em relações internacionais na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).

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Como o Ocidente se tornou individualista, iconoclasta, materialista e sexualizado?

A subversão da ordem sagrada pelo individualismo tem provocado profundas mudanças em nossa sociedade

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Vivemos tempos conturbados. A faceta mais óbvia deste cenário são as disputas políticas do dia-a-dia e as guerras de narrativas que dominam a imprensa e as redes sociais.

Vivemos em uma ‘orgia digital’, para usar o termo do neurocientista francês Michel Desmurget, e estamos todos aprendendo a lidar com essa nova realidade e os seus impactos em áreas centrais das nossas vidas, como nosso bem-estar e a criação dos nossos filhos.

As redes sociais provocaram enormes transformações no comportamento humano e na forma de nos relacionarmos, mas quero aqui explorar uma mudança ainda mais profunda que vêm ocorrendo na sociedade ocidental (incluindo EUA, Europa e Brasil), cujo resultado ainda não temos como mensurar: a transição de uma sociedade cujos códigos éticos e morais estão lastreados em uma ordem sagrada, que transcenda nossa própria existência, para uma sociedade que não encontra sentido em nada sobrenatural, e portanto precisa justificar sua existência e buscar respostas com base em si mesma.

Floral para os dias de solidão
Solidão - 24.jun.2021/Pexels

Para entendermos melhor esse fenômeno cultural, são importantes as idéias do sociólogo americano Philip Rieff, muito bem descritas pelo escritor contemporâneo Carl Trueman em seu último livro, “The Rise and Triumph of the Modern Self” (“A Ascensão e Triunfo do Ser Moderno”, ainda sem tradução para português). Antes de mais nada, meu objetivo neste curto espaço não é atacar idéias com as quais eu discordo, mas simplesmente oferecer uma breve reflexão racional sobre essa transformação e suas implicações.

Philip Rieff usa os termos primeiro mundo, segundo mundo e terceiro mundo para descrever o tipo de cultura que uma sociedade adota, mas não no sentido econômico que estamos acostumados. Para Rieff, esses mundos —do primeiro ao terceiro —representam classificações de como as culturas foram mudando, principalmente no que diz respeito à busca pelo sentido da vida. Rieff considera que a ordem social, que contempla os valores morais de uma sociedade, é baseada essencialmente em uma ordem sagrada; algo que transcenda a mera existência humana. E é justamente a perda de uma justificativa externa para nossa existência que é tão catastrófica para a sociedade moderna.

O primeiro mundo de Rieff são as sociedades pagãs, que acreditavam primordialmente em mitos. Os mitos e deuses eram responsáveis pela ordem sagrada dessas sociedades. Como exemplo, Carl Trueman cita o caso do lendário Licurgo de Esparta, cujas leis tinham autoridade por serem sancionadas por um ser sobrenatural, o Oráculo de Delfos. Os mitos em que os espartanos acreditavam são irrelevantes. O que importa é que havia um apelo a uma ordem sagrada, algo que existisse além do cotidiano da sociedade e fora do controle de homens e mulheres comuns.

Em seguida vem o segundo mundo que, de acordo com Rieff, surge com as religiões tradicionais, tendo como seu principal exemplo a ascensão do cristianismo. Os impactos do cristianismo na sociedade ocidental foram muito profundos. Toda a teoria jurídica de São Tomás de Aquino teve como base a própria figura de Deus. Os conceitos de justiça e piedade adotados em muitos países foram extraídos dos ensinamentos bíblicos.

Vemos, até hoje, diversos exemplos da busca por uma ordem sagrada no poder público, como a cruz ostentada no plenário do nosso Supremo Tribunal Federal ou o juramento de posse dos presidentes americanos, feito com uma mão sobre a Bíblia. A ideia é de que todas as pessoas (incluindo nossos governantes) estão sujeitas a uma lei que está acima de todos nós —uma lei divina.

O ponto central é que o primeiro e o segundo mundo desenvolvem uma estabilidade moral e cultural porque são sociedades que têm como alicerce algo sagrado, que extrapola a existência humana. Elas buscam o sentido da vida em algo transcendente, não material.

Em contraste, as sociedades que Rieff classifica como terceiro mundo não baseiam sua cultura e ordem social em algo sagrado, mas na própria existência de cada ser humano. Cada um é sua própria razão para viver. Podemos ir além e dizer que cada um é seu próprio Deus. Ao rejeitar qualquer ordem sagrada e ter que se justificar com base em si mesmo, o terceiro mundo carrega um grau de instabilidade moral com profundos desdobramentos em todas as áreas da vida contemporânea. O resultado é uma cultura extremamente volátil, confusa e sujeita ao colapso.

O individualismo, a iconoclastia e o materialismo são decorrentes, ao menos em parte, (o surgimento do capitalismo também teve sua parcela de responsabilidade) destas profundas transformações na forma das pessoas enxergarem o divino e enxergarem a si mesmas. À medida que as pessoas foram perdendo o interesse de servir a Deus, a prioridade virou, cada vez mais, servir suas próprias vontades e desejos. A sexualização excessiva da sociedade virou uma realidade a partir desta mudança, e acabou sendo muito acelerada pelo advento da internet. Além da pornografia que, segundo algumas estimativas, é responsável por 20% de todo o tráfego da internet, a sexualização exacerbada de mulheres têm se tornado cada vez mais evidente em redes “mainstream” como Instagram e TikTok. Em um mundo onde a vontade de Deus perde espaço para a vontade e os desejos individuais de cada pessoa, a busca pelo prazer material ou sexual se torna cada vez mais a força motriz dos seres humanos.

Retornando ao conceito dos mundos de Rieff, é importante ressaltar que não devemos encará-los como retratos cronológicos de diferentes períodos da nossa história. Hoje, dentro de um mesmo país, temos culturas de segundo e terceiro mundo convivendo juntas, e isso ajuda a explicar muitas das discussões que hoje tomam conta do debate público. A dificuldade de encontrar convergências entre grupos que buscam o sentido da vida em lugares distintos é enorme.

Não há como saber os desdobramentos que todas essas mudanças provocarão, mas finalizo com uma citação categórica de Philip Rieff:

“Nenhuma cultura jamais se preservou onde não há o registro de uma ordem sagrada. Ali, culturas não sobreviveram. A noção de uma cultura que persistiu independente de qualquer ordem sagrada é sem precedentes na história humana.”

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