Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Descrição de chapéu tiktok

Se Lolita tivesse TikTok

Agora o pedófilo pode aliciar sua vítima sem nem calçar os sapatos

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Quase todo mundo conhece a história do clássico de Nabokov: um homem chamado H.H se apaixona por Lolita, uma menina de 11 anos, e resolve se casar com a sua mãe para ficar mais próximo dela. Numa certa altura do romance, a mãe morre e ele faz diversos trâmites para ter a guarda da órfã, em seguida partindo com ela para uma viagem.

Segundo a edição de agosto de 1986 da revista Vanity Fair, "Lolita" é "a única história de amor convincente do nosso século", frase em destaque na edição brasileira, revelando um equívoco de leitura que perdura por décadas e uma constrangedora inépcia da nossa sociedade para entender o que é o amor.

Uma mão masculina segurando um celular com o logotipo do aplicativo TikTok
Loic Venance - 21.jan.21/AFP

"Lolita" é, na verdade, um romance sobre doença mental, abuso e pedofilia (Nabokov tinha consciência disso, tanto que sentiu receio ao lançar o livro). Durante meses, em diferentes motéis, H.H estupra, suborna e ameaça Lolita. Às vezes dá moedas em troca de mais sexo. Quando descobre que a criança está amealhando dinheiro para fugir, confisca tudo. Diz que irá entregá-la para a polícia e confiná-la num centro de detenção juvenil. Rasga sua blusa. Desfere-lhe um tapa na cara. Fantasia engravidá-la para abusar de sua filha. Como Lolita irá dizer a ele quando adulta: você apenas devastou a minha vida.

Não estou aqui para cancelar Nabokov —como discutir certos assuntos se eles forem extirpados da literatura? Por mais repulsivo que seja, esse romance, muito bem escrito, nos dá a chance de entrar na cabeça de um pedófilo, entender os mecanismos do abuso e elaborar diversas questões.

Como essa história se desenrolaria em 2023? Talvez H.H não tivesse que fazer o sacrifício de se casar com a mãe de Lolita, nem de ludibriar autoridades para ficar com a órfã. Talvez tudo o que ele precisasse fazer, na comodidade do seu sofá, fosse instalar o TikTok.

Como fez Eduardo da Silva Noronha, que aliciou pelo Tiktok uma menina de 10 anos, durante dois anos, até que ela resolveu encontrá-lo. Nesse momento, o H.H brasileiro lançou mão do sequestro, levando-a do Rio de Janeiro até o Maranhão, onde foi mantida em cativeiro por duas semanas, até ser resgatada, depois de enviar mensagens de socorro para sua família.

Será que a Vanity Fair chamaria isso de história de amor? Os elementos são quase os mesmos, mas há a novidade: agora o pedófilo pode aliciar sua vítima sem nem calçar os sapatos. E com os pais da criança abrindo alas. Ainda que especialistas só recomendem o uso de redes sociais a partir dos 13 anos, muitos pais e mães, exaustos, têm deixado seus filhos desde cedo aos cuidados da relapsa e perversa babá algorítmica.

Estamos falando de milhões de Lolitas expondo sua imagem e recebendo mensagens de desconhecidos. E isso um país em que o abuso contra crianças é naturalizado —61,3% das vítimas de estupro no Brasil são menores de 13 anos.

O caso do Maranhão pode ser extremo, mas quantas crianças ainda terão suas vidas arruinadas por nudes vazados na internet, ciberbullying ou discursos de ódio, como os que estão disseminando os ataques às escolas?

A Lolita do livro e as milhares de outras não são garotas insinuantes e poderosas, como alguns ensaios de moda, filmes e capas de livros nos fizeram acreditar, alimentando um padrão estético que só gera mais pedofilia. As Lolitas são crianças —mesmo que algumas estejam perto da adolescência. E, como toda criança, elas precisam ser protegidas, seja pela família, por políticas públicas ou pelas redes sociais, que devem oferecer conteúdo seguro para os seus usuários.

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