Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso

Os inimigos do fim

A recusa a ir embora é um clássico atemporal que já devia ter adeptos desde os primórdios

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Todo mundo conhece algum inimigo do fim. Aquela pessoa que implora para a banda tocar uma última música, que só sai da pista quando o estrobo estanca, as luzes se acendem e precisa ser arrastada do ambiente pelos seus amigos. Que, mesmo depois de se despedir do anfitrião —o único que resta— e passar pela porta, ainda segue batendo papo enquanto o elevador boceja às suas costas.

A recusa a ir embora é um clássico atemporal que já devia ter adeptos desde os primórdios, quando o dono da caverna punha o tacape atrás da pedra para espantar a visita, futuramente se tornando o hábito de pôr a vassoura atrás da porta e, hoje, evoluindo para o gesto de pegar o celular e dar um scroll para ver se o visitante se toca —inimigo do fim que se preze não se toca jamais! Aproxima-se para ver junto o scroll.

um copo de uísque segurado por um homem branco
Homem segurando um copo de uísque - Fiocruz Imagens

Inconvenientes às vezes, aborrecidos jamais. Mil vezes um inimigo do fim do que um amigo do começo, aquele que chega já querendo ir embora, que prefere olhar para um relógio a um par de pernas, que beberica sua água já estudando as portas e bolando o esquema tático para a sua saída à francesa. Um bom inimigo do fim não esmorece nunca, mesmo quando a comemoração é uma roubada, achando alguém para trocar ideia em meio aos brigadeiros pisoteados de uma festa de criança.

Há algo de ingênuo (e talvez por isso encantador) em quem agarra cada oportunidade de se divertir como se fosse a única. E também de humano. Para lá da soleira da festa, estão os boletos, as lâmpadas que precisam ser trocadas, as esteiras de academia, os resultados dos exames clínicos, o jantar sem carboidrato, os botões que precisam ser pregados, o amor que azedou feito o leite, o leite que azedou feito o amor, as planilhas a serem preenchidas, o imposto de renda.

É por isso que o hall do prazer é complexo. Quando frequentado às vezes, revigora. Quando tomado como endereço fixo, arruína. Quando não visitado nunca, empobrece a experiência humana.

Extravasar é preciso: cantar e dançar são dos poucos traços comuns a qualquer cultura, em qualquer época ou lugar do mundo. Alguns chegam a dizer que festas têm até um papel político, porque é das brincadeiras, do caos criativo, da interação sem hierarquia que podem surgir, inclusive, novas formas de viver.

Como o May Day, o Dia Internacional do Trabalho, que nasceu da celebração da primavera, uma data em que os trabalhadores perceberam que gostavam de botar as pernas para o ar e, portanto, deveriam tomar providências para mantê-las assim pelo maior tempo possível, oficializando no calendário um dia de luta para isso.

E mesmo quando tudo o que uma comemoração rende é ressaca, o saldo é positivo. Embora, ultimamente, eu venha precisando reconsiderar esse cálculo. Sempre fui uma inimiga do fim mas, aos quarenta e sete anos, alguns parceiros começaram a me chamar para ir embora mais cedo: o meu exausto fígado, a minha voluntariosa lombar, o meu irritadiço estômago.

Tornei-me uma amiga do meio. Não tenho mais o prazer de ver vassouras varrendo guardanapos, nem de dizer o que não devo para outros convidados, nem de ver amigos comprometendo seus casamentos por trás das cortinas às três da manhã. Me consolo pensando que a melhor das festas é a vida. E, como nessa quero ficar até o último minuto, venho aceitando ir embora de braços dados com a parcimônia.

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