Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Giovana Madalosso
Descrição de chapéu Todas maternidade

Segura que o filho é nosso

Posso me desdobrar em vinte, mas isso vai fazer meu filho acreditar que eu sou uma heroína, e eu não quero dar para ele o exemplo de que mãe é mártir

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Sou mãe e, como a maioria das outras, consigo me desdobrar em muitas, mas será que devo fazer isso?

Posso me dividir um duas, mas nunca vou conseguir cobrir a figura do pai. E nem quero porque a presença paterna é importante para uma criança.

Posso me desdobrar em quatro, mas nunca vou conseguir fazer o papel dos avós, com sua experiência e seu afeto açucarado pelos anos e hérnias.

Posso me desdobrar em dez, mas nunca vou conseguir substituir a madrinha, o padrinho, a vizinha, o motorista da perua, o amigo de família, o primo que faz aviãozinho e tantos outros, porque cada pessoa é uma, e cada uma delas mostra para o meu filho que o mundo é feito de pessoas diferentes, com ideias diversas.

Ilustração de Catarina Pignato mostra uma mulher segurando um bebê em um sling
Catarina Pignato

Posso mostrar para o meu filho planetas, estrelas e constelações, ensinar matemática com 200 g de farinha e 100 ml de óleo, recortar na massa fresca um triângulo isósceles e um escaleno, mas isso nunca vai substituir um professor e uma escola.

Posso me desdobrar em vinte, quem sabe até em quarenta, simultaneamente assobiar, fritar ovo e trocar fralda; segurar dois no colo, um na perna, outro na cacunda; ser a plateia cheia que ovaciona o teatrinho; fazer de mim um polvo, uma malabarista, uma comunidade em forma de mulher, mas isso vai fazer meu filho acreditar que eu sou uma heroína, e eu não quero dar para ele o exemplo de que mãe é mártir. De que mulher é mártir. De que qualquer pessoa deve ser mártir.

Quem sabe, com todo esse amor que me escapa até pelas orelhas, eu possa me desdobrar até em algo de força sobre humana e sair por aí pintando praça, improvisando creche, mas fui eu mesma que ensinei para o meu filho que podemos até ajudar no dever do outro, mas nunca fazer o dever do outro. E todas essas tarefas gigantes são dever do Estado.

É, eu poderia ser muitas mas só quero ser uma. Nem duas, nem uma vírgula três. E às vezes até menos do que uma. Quase uma. Lascada, quebrada, imperfeita, ferrada. Ou egoísta, como tantos homens, vangloriados por abraçarem a carreira e ganharem o mundo, por trabalharem em outras cidades, por cruzarem oceanos, sem nunca serem questionados como nós: quem ficou cuidando dos seus filhos?

Olhe para mim: não tenho mais braços do que ninguém. E, ao contrário do que alguns pensam, não tenho "espírito de cuidadora". Se desenvolvi foi por força das circunstâncias.

Pegando aquela frase da Simone de Beauvoir e indo um passo para lá: ninguém nasce mãe, torna-se mãe. Se tudo é uma construção, inclusive a maternidade, podemos reconstruí-la de outra maneira. Cruzar os braços e deixar que o outro faça. Dizer: segura você, que o filho é nosso. E quanto mais nosso, melhor para ele.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.