Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
Descrição de chapéu Todas aborto maternidade

O filho que eu não tive

Imaginei como teria sido a minha vida se eu não tivesse interrompido aquela gravidez

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Tínhamos 17 anos quando a minha menstruação atrasou. Abri o envelope do laboratório com o coração na garganta: estava grávida. Eu morava com meus pais, ele, com a irmã. Ainda estávamos estudando para o vestibular. Ainda estávamos longe de ter um emprego. E mesmo que tivéssemos: achamos que não era o momento. A decisão parecia óbvia. Ainda assim nos batemos. Nunca é fácil para ninguém.

Lembro do quanto me senti sozinha. Tinha receio de falar com meus pais. Faltava um sistema de saúde que me acolhesse naquele momento. Nos viramos como deu. Ele descobriu um amigo de um amigo que trazia uma pílula abortiva do Paraguai. Tomei o comprimido sem procedência clara, sem garantia de nada, morrendo de medo.

Alguns meses depois, entramos na faculdade. Nos separamos. Segui meu caminho. Fui estudar fora. Me mudei para São Paulo. Virei redatora depois roteirista depois escritora. Este ano, eu estava autografando livros em outra cidade quando ele apareceu, lá no meio da fila, com meu último romance na mão. Quase borrei o autógrafo: há décadas eu não via o seu rosto.

Imagem fechada em um pé de um bebê
Trevor M por Pixabay

Saímos para jantar e botar o papo em dia. Num certo momento, ele me perguntou se eu não tinha me arrependido do que fizemos. Não era uma coisa em que eu costumava pensar. Ali no meio daquele silêncio súbito, com os pratos à nossa frente, imaginei como teria sido a minha vida se eu não tivesse interrompido aquela gravidez.

Mesmo ele sendo um cara bacana, fomos criados na mesma cultura. Essa cultura que conhecemos tão bem. Tenho certeza de que ele teria feito exatamente tudo o que fez: terminado a faculdade, vivido as tantas aventuras que viveu, trabalhado em diversas cidades, montado negócios aqui e ali. Acho que eu teria terminado a faculdade. Certamente não teria estudado fora, não teria como fazer isso com um bebê e sem uma rede de apoio. Como não poderia estudar cinema na minha cidade natal, não teria virado roteirista. Também não teria me mudado para São Paulo e tido as mesmas oportunidades. Ao menos não tão cedo. E nem formado a mesma família. Teria sido mais feliz, menos feliz? Nunca saberei.

Embora um embrião seja feito por dois, jamais serão divididos por dois os desdobramentos de sua existência. É na barriga da mulher que vão rebentar as estrias e enjoos. Se tiver o filho, só ela se desligará por quatro meses do trabalho. Em geral, são os sonhos dela que antes serão protelados ou deixados de lado. É ela que irá ouvir: toma que o filho é teu —há 11 milhões de mães solo no Brasil. E, em caso de aborto ou complicação na gravidez, só ela viverá o risco de morte.

Se é sobre o corpo da mulher que quase tudo recai, é a partir do corpo da mulher que devemos pensar a questão do aborto. As brasileiras nunca deixaram de abortar mesmo sendo proibido. Até algumas mulheres que se colocam publicamente contra o fazem em segredo. Uma em cada sete mulheres já abortou no Brasil. Essa discussão é, portanto, sobre saúde pública. Sobre em que condições serão feitas essas interrupções.

Voltando para a pergunta que pairava sobre nossos pratos naquele jantar. Pensei mais um pouco e, por fim, disse a ele que não me arrependia. Talvez porque eu tenha sobrevivido a minha experiência. Outras não tiveram a mesma sorte: a cada dois dias morre uma mulher por aborto inseguro no Brasil.

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