Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

A Copa do streaming e do VAR coloca os espectadores em temporalidades paralelas e contraditórias

No primeiro gol do Brasil, gritamos com a missão de sermos aquilo que os vizinhos foram com a gente: a voz do futuro

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Esta é a primeira Copa que acompanho pelo streaming. Assisti ao primeiro jogo do Brasil diretamente do passado, a um minuto e meio de distância dos vizinhos que viam pela antena. Graças aos gritos dos viajantes do futuro que moram no 701, soube de cada gol com um minuto e meio de antecedência. Foi a primeira vez em que tive que lidar com spoilers assistindo a um evento ao vivo. Ou melhor, "semi ao vivo".

Graças ao delay, o espectador do streaming consegue experimentar o sabor da paranormalidade. Morando no passado, sabe o que acontecerá no futuro, e também aquilo que não acontecerá. Vaticina, como um oráculo moderno: "Podem ficar tranquilos, essa jogada não vai dar em nada, senão já teríamos ouvido a comemoração". Estando no presente, assiste ao passado, com a empáfia do futuro. "Pobrezinhos, se esforçando em vão."

campo de futebol desenhado e o colunista gregorio duvivier, usa terno mostarda com gravata escuro e camisa branca. Ele em si está em PB, usa barba e bigode. Tem cabelo curto e está com o punho direito apoiado no rosto
ilustração de Catarina Bessel para a coluna de humor de Gregorio Duvivier - Catarina Bessel

Até que ouvimos o gol no vizinho, e a alegria se mistura à perplexidade: é para festejar agora? Ou esperamos o gol chegar na tela? Como comemorar um gol invisível? Afinal cada tipo de gol merece um tipo de grito. Quando o gol chega, já não brilha: perde toda a beleza do inusitado. O chute parece previsível, os gestos combinados, o goleiro canastrão.

Assim como acontece na mitologia grega, o prazer de saber o futuro logo dá lugar ao desespero por sabermos mais do que gostaríamos. Como Cassandra, descobrimos o fardo da profecia e passamos a almejar a ignorância.

No segundo jogo, fui para casa do meu padrasto ver na tevê tradicional, como faziam os fenícios. E que delícia a sensação de não fazer ideia do que está por vir. Sabemos tanto quanto os jogadores: nada. Tudo pode acontecer, como na vida —o futuro já não nos entra pela janela. Até porque não há futuro: estamos nele.

No primeiro gol do Brasil, gritamos com a missão de sermos aquilo que os vizinhos foram com a gente: a voz do futuro. Deixamos de ser só torcedores pra sermos oráculos não requisitados invadindo a casa alheia.

Até que, um minuto depois, o gol pro qual tanto berramos foi anulado pelo VAR. E agora? O que manda a etiqueta? Devemos avisar aos vizinhos que demos um alarme falso? O gol nem chegou lá ainda. Pobrezinhos, estão tristes por ainda não estarem felizes, sem saber que a felicidade que virá será em vão. Acham que estão atrás, mas estão à frente. Não sabendo como será o gol, sabem mais que nós, que achávamos que tinha havido gol, quando não gol. Essa é minha primeira Copa quântica.

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