Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.

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Novelas brasileiras vivem regressão temática que remete a primórdios da TV

Abaladas pela onda conservadora na sociedade, tramas têm, segundo livro, fase de retrocesso marcada pela 'neofantasia'

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Os sinais estavam todos aí, à disposição de quem ainda tem prazer em ver folhetins na televisão, mas faltava alguém dizer com todas as letras. As novelas brasileiras vivem um retrocesso temático que remete aos primórdios do formato.

Estela (Nathalia Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) em Babilônia (2015) - Divulgação/Globo

As novelas bíblicas da Record e as tramas fantasiosas de Walcyr Carrasco no horário nobre da Globo a partir da metade da década passada são produtos que ajudam a entender esta nova fase, segundo o roteirista, dramaturgo e diretor teatral Lucas Martins Néia.

Num livro recém-publicado, "Como a Ficção Televisiva Moldou um País", versão de sua tese de doutorado, Néia busca dialogar com outros estudiosos que estabeleceram grandes marcos temporais da teledramaturgia brasileira, em especial as professoras Maria Immacolata Vassallo de Lopes e Esther Hamburguer.

Resumindo muito, aqui, esta periodização da telenovela no Brasil estabelece como primeira fase o período de 1963 a 1968, chamado de "fantasia" ou "sentimental", com tramas água com açúcar e heróis de capa e espada. A segunda fase, de 1968 a 1990, "nacional-popular" ou "realista", é aquela em que a realidade brasileira aparece em primeiro plano.

Na terceira fase, de 1990 a 2015, "de intervenção" ou "naturalista", as novelas propõem ações de responsabilidade para atenuar as mazelas do país.

Néia levou em conta 677 telenovelas diárias exibidas entre 1963 e 2020. Ele propõe em seu estudo uma quarta fase, batizada como de "neofantasia" ou "neossentimental", que vigora desde 2015. A emergência desta nova etapa tem, como símbolo maior, "Os Dez Mandamentos", de Vivian de Oliveira, que a Record exibiu com sucesso de audiência a partir de 2015.

"Além do aspecto universal das narrativas e da aposta em cenas espetaculares, o sucesso desses produtos encontra respaldo no fortalecimento da onda conservadora no espectro sociopolítico do continente nos últimos anos", observa o autor.

A trama bíblica estreou uma semana depois de "Babilônia", na Globo. A novela de Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga foi atropelada por críticas morais e religiosas. A Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional pediu boicote ao folhetim.

O pretexto para os protestos foi uma cena exibida no primeiro capítulo, que mostrou um beijo na boca entre duas personagens idosas, vividas por Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg. Em resposta, a Globo amenizou diversos aspectos da trama e alterou o logotipo e a abertura da novela.

Pensando na cena política do país, na adesão de um novo público a pautas conservadoras e nos acontecimentos que levaram ao impeachment de Dilma Roussef e, depois, à eleição de Jair Bolsonaro, Néia enxerga uma lógica no sucesso da "neofantasia" proposta pelas novelas do período.

"Assim, uma ficção bíblica tende a ser encarada por esse novo público consumidor não como mero entretenimento, mas como um produto evangelizador. Muitas vezes isso ocorre a partir de estratégias engendradas pela própria esfera produtora (Record/Igreja Universal do Reino de Deus)".

Exibida até julho de 2016, "Os Dez Mandamentos" catalisa essas mudanças, mas não está só. O "retrocesso", no sentido de retornou ou resgate, segundo o autor, também alcança a Globo, cuja teledramaturgia foi comandada no período por Silvio de Abreu.

"Como a Ficção Televisiva Moldou um País: Uma História Cultural da Telenovela Brasileira (1963 a 2020)" não está à venda, mas pode ser baixado gratuitamente no Portal de livros abertos da USP. Creio que uma versão mais sintética, que simplifique a tese, poderia agradar ao público leigo.

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