Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Por que é pobre reduzir a música sertaneja a herdeira do agronegócio?

Ainda que se relacionem e que tenham suas raízes nos anos 1950, as histórias do gênero e da atividade são distintas

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Em tempos eleitorais radicalizados como o que vivemos, é comum ver reportagens associando diretamente agronegócio e música sertaneja, como se um fosse herdeiro direto do outro, como foi defendido aqui nesta Folha em coluna recente. Trata-se de uma análise pobre historicamente.

A música rural brasileira de matriz paulista surgiu como produto cultural em 1929. Foi quando Cornélio Pires, folclorista e ativista cultural, gravou os primeiros discos do gênero. Desde então, floresceu uma indústria fonográfica voltada aos moradores dos campos brasileiros.

Nos anos 1950, começou a se constituir no Brasil o que se convencionou chamar de música sertaneja moderna, a partir da incorporação de gêneros musicais estrangeiros como o bolero e a rancheira mexicanos, a guarânia paraguaia, e o chamamé argentino.

Gusttavo Lima na live O Embaixador no Agronegócio
Gusttavo Lima na live 'O Embaixador no Agronegócio' - Reprodução

Na época não existia nem sequer a palavra agronegócio no Brasil.

Como apontou o antropólogo Caio Pompéia em seu livro "Formação Política do Agronegócio", o termo agronegócio surgiu em escolas de administração americanas, e não nas de agronomia, no fim dos anos 1950. Mais tarde passou a ser incorporado para explicar a moderna cadeia produtiva agrária americana, onde se destacam os cinturões de trigo, milho e algodão.

À primeira vista poderia se associar diretamente o agronegócio à música sertaneja, afinal ambos tiveram os anos 1950 como épocas-chave de suas formações. Mas a história é mais complexa.

Os gêneros incorporados pela música sertaneja nos anos 1950 eram gêneros latinos, não americanos. Gêneros esses que, a partir do advento da bossa nova, foram considerados cafonas pelas elites culturais do Sudeste do país.

É comum hoje se utilizar o termo agronegócio para designar qualquer tipo de produção rural. "Agro é tudo", no jargão da TV Globo. Idelber Avelar mostrou em seu livro "Eles em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século 21" que o termo ‘"agronegócio" se sobrepôs ao termo "latifúndio", palavra utilizada até os anos 1990 para descrever a grande propriedade agrária nacional. Ao desestigmatizar as elites rurais, as direitas agrárias tiveram sua primeira vitória no campo das ideias.

Junto com a vitória ideológica, veio a consolidação estrutural de uma nova forma de gerir o mundo agrário. O agronegócio é a industrialização do campo e a associação da produção agrícola aos serviços financeiros, de transporte, marketing, pesquisa, seguros e Bolsas de Valores mundiais. Tudo isso reconfigurou o campo brasileiro.

A área dos latifúndios era a grande propriedade rural próxima ao litoral brasileiro. O agronegócio promoveu a ocupação produtiva do Centro-Oeste, até então visto como espaço de baixa fertilidade, voltado para cultura de subsistência.

A criação de instituições federais de pesquisa como a Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, fundada em 1973, permitiu que sementes melhoradas e "correções" do solo do cerrado transformassem o Centro-Oeste no celeiro mundial que é hoje. Foi durante a ditadura que aconteceram os primeiros passos em direção à industrialização do campo brasileiro.

É óbvio que música sertaneja e agronegócio têm alguma relação. Mas uma não se reduz à outra, pois suas cronologias são consideravelmente distintas. Se há pontos de contato, e de fato estes existem, um não condiciona o outro de forma determinista.

O que está em jogo é a velha mania de se ver a cultura como mero apêndice da economia. No Brasil, um dos principais representantes dessa linha foi o jornalista José Ramos Tinhorão, que considerava a bossa nova fruto da submissão brasileira às modas americanizadas a partir da entrada de multinacionais no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Para Tinhorão, a "jazzificação" do samba era um crime ao folclore nacional.

Simplificar a bossa nova como se ela fosse fruto pura e simplesmente da entrada de multinacionais no governo de JK é tão equivocado quanto associar diretamente música sertaneja ao agronegócio.

Não há um "DNA de direita" na música sertaneja. Vale lembrar que o agronegócio se fortaleceu enormemente sob um governo de esquerda, os mandatos de Lula e Dilma (2002-2016), quando também surgiu o chamado sertanejo universitário, a partir de 2005.

Entregar a música sertaneja no colo do agronegócio é a segunda vitória das direitas autoritárias em reconfigurar o Brasil rural ideologicamente. Mas não tem que ser assim.

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