Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Caso Calabresa/Melhem é um tema importantíssimo

Melhem vem conseguindo se defender das acusações com provas pertinentes

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Guerra na Ucrânia? Taxa de juros? A esquecida reforma agrária? Não, o tema de maior importância no Brasil atual é a acusação de assédio moral e físico que a humorista Dani Calabresa e diversas mulheres imputam a Marcius Melhem.

O ator, roteirista e comediante Marcius Melhem foi chefe do núcleo de humor da Globo durante anos e, numa postura sem fronteiras entre amizade e chefia, desenvolveu relações questionáveis do ponto de vista ético com várias funcionárias da emissora. Mas teria Melhem cometido um ato criminoso?

Em outras épocas, a acusação de assédio dentro da Globo seria risível, para desespero das vítimas. Havia até um termo que ridicularizava qualquer problematização mais densa: "teste do sofá".

Por isso o caso Calabresa/Melhem é um tema importantíssimo: põe em pauta a violência física e moral contra mulheres do meio artístico, seara bastante volúvel sexualmente e ao mesmo tempo permeada por autoritarismos masculinos. Mas também põe em pauta outra questão: e se não tiver havido crime, quais as consequências?

Entrevista
O ator e roteirista Marcius Melhem em entrevista ao portal Metrópoles - Reprodução YouTube

A bomba que catalisou o caso, que até então estava restrito aos corredores da Globo, foi detonada em dezembro de 2020 na revista Piauí. Escrita pelo jornalista João Batista Jr., a reportagem "O que mais você quer, filha, para calar a boca?" narrava a trajetória de um predador sexual. Um dos alvos preferenciais de Melhem teria sido a humorista Dani Calabresa.

De lá para cá, o que se viu foram reviravoltas, quase sempre favoráveis a Melhem, que passou a disputar a narrativa por meio da divulgação de diálogos do WhatsApp, fotos e vídeos. Nas conversas há intensas demonstrações de carinho e afeto entre Melhem e as supostas vítimas, mesmo depois do suposto assédio. Digo supostas vítimas pois até agora Melhem não é réu e tampouco foi acusado formalmente. Quem judicializou o caso foi o próprio Melhem, em virtude da reportagem da revista Piauí.

A Globo, depois de intensa investigação interna, lavou as mãos e não puniu o humorista. Seu contrato com a emissora terminou e ele saiu de lá com uma carta de agradecimento em agosto de 2022. A emissora demitiu todas as acusadoras. Dani até foi posteriormente recontratada, mas como free-lancer, para cobrir edições do Big Brother Brasil.

Melhem vem conseguindo se defender das acusações com provas pertinentes. Todas elas merecem escrutínio público e análise detalhada, além do óbvio respeito às possíveis vítimas. Mas o direito à defesa e a pressuposição da inocência também são primados do Estado de Direito. Quem tem de provar as acusações é quem acusa. No entanto, numa inversão de matrizes jurídicas clássicas, o que se vê é o acusado tendo de provar sua inocência.

Desde dezembro de 2022 Melhem não está mais sozinho. O jornalista Ricardo Feltrin vem se destacando em seu canal de YouTube tratando sistematicamente o caso com conteúdos novos e análises críticas. Feltrin, que havia participado da malhação moral contra Melhem em 2020, diz ter analisado o caso em profundidade e mudado de opinião.

Apesar de questionar a personalidade fanfarrona de Melhem, Feltrin afirma que ele não é um criminoso. As acusações seriam fruto de um complô, com intenções diversas de diferentes ex-relacionamentos profissionais e afetivos do humorista.

Algumas seriam ex-namoradas rancorosas, cujas razões Feltrin explica em detalhes. Outras mulheres queriam determinados programas, cargos e créditos em quadros da Globo, e Melhem teria sido o bode expiatório de todas elas. O que uniria todas as supostas vítimas seria a ideia de tomar a chefia do humor da Globo, numa tentativa de golpe que acabou frustrada.

O caso Calabresa/Melhem merece um livro, documentário, filme ou um bom podcast, seja qual for sua conclusão. Pela possível reviravolta a ser confirmada, trata-se, potencialmente, de um dos casos mais importantes do nosso tempo. Melhem, que nem sequer foi julgado, padece de um veredicto social sem juiz ou júri formal. Mas será que conseguirá virar o olhar da sociedade a seu favor?

Reviravoltas em julgamentos denotam mudanças em padrões de sensibilidade da sociedade. Buscando na história, é importante lembrar o caso do julgamento de Doca Street pela morte da socialite Ângela Diniz em momento crucial da redemocratização brasileira. Houve dois julgamentos desse caso paradigmático para o feminismo brasileiro. No primeiro, em 1979, Doca Street foi estranhamente absolvido. Diante da pressão da opinião pública, em 1981 houve novo julgamento e ele foi condenado pelo horrível crime.

Muitos nos calamos diante do que aconteceu com Melhem, compadecidos do abominável crime apontado. Tratava-se de um silêncio compreensível, afinal havia precedentes escandalosos. Nos EUA, houve o caso do ex-todo-poderoso de Hollywood, Harvey Weinstein, que foi condenado por assédio, abusos e até estupro de diversas atrizes. Aqui no Brasil, o caso do ator José Mayer detonou uma justa atenção para um tipo de postura machista execrável.

Mas e no caso concreto de Marcius Melhem? Caso consiga convencer a sociedade da consistência de suas provas, Melhem estará chamando a atenção para algo sobre o que Francisco Bosco já refletiu em seu ótimo livro "A Vítima Tem Sempre Razão?", lançado em 2017, antes do caso em questão explodir. O que está em jogo é exatamente o estatuto da vítima. Em havendo vítima, há réu, há crime. Mas há?

E, mesmo que não sejam vítimas sexuais, é possível que algumas das acusadoras sejam vítimas de relações trabalhistas ultrajantes conduzidas por um chefe autoritário. Mas não é isso que vem lastreando a discussão em torno do caso, visto que as supostas vítimas nunca abriram acusação alguma na polícia contra Melhem, nem muito menos na Justiça do Trabalho, o que envolveria também a todo-poderosa Globo.

Seria interessante ir além do particularismo individual de um chefe autoritário para uma análise empresarial das responsabilidades. Mas, infelizmente, não é isso o que está em jogo na acusação de assédio.

Como em todo caso particular, é o pressuposto de vítima que precisa ser definido com atenção e cuidado. Com os dois lados. Não se trata de preservar o "estuprador", o macho, nem de culpabilizar a vítima, mas de respeito aos procedimentos jurídicos que lastreiam nossa sociedade.

O caso Calabresa/Melhem é central para definirmos o que queremos das pautas identitárias, o que precisa ser mais bem ponderado e como devemos lidar com os casos falsos e verdadeiros de violência contra a mulher, estes infelizmente tão comuns em nossa sociedade.

Afinal, não podemos fazer um julgamento apenas com convicções, sem analisar a sério as provas e contraprovas de ambos os lados.

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