Assisti ao polêmico stand-up de Dave Chapelle que despertou a ira da comunidade LGBTQIA+. Não me estatelei de rir, mas há obviamente boas piadas. O que me interessa, porém, não é discutir se o programa é engraçado, mas sim se as queixas contra o comediante procedem.
Todo mundo é livre para gostar ou não de um show ou de qualquer outra manifestação artística. Quem não gosta ou se sente ofendido tem, é claro, o direito de criticar, em termos hiperbólicos se desejar. O que não me parece tão sábio é transformar os inevitáveis juízos divergentes numa batalha moral. Fazê-lo implica perder de vista a principal característica do humor e da ficção em geral, que é a de experimentar com a realidade.
O humor, que é essencialmente um jogo em que diferentes camadas de significado se chocam produzindo novos significados, nos permite dizer coisas sem nos comprometermos com elas. Se eu faço um gracejo com um conhecido e ele quer me bater, posso dizer que era só uma brincadeira e evitar o confronto. O humor, a literatura e até os sonhos são, como os simuladores de voo, uma forma de testar situações correndo menos riscos —uma formidável ferramenta de aprendizado.
Como já observara Henri Bergson, o humor tem uma faceta cruel, já que muitas piadas exigem "uma anestesia momentânea do coração". A palavra-chave aqui é "momentâneo". Não é porque Chapelle troça de um grupo num dado instante que ele o está rebaixando moralmente e lhe negando humanidade. A coisa é traiçoeira, pois também é possível fazer exatamente isso. Gente da extrema direita se refugia no humor para atacar minorias e depois, se necessário, recua dizendo que era brincadeira. É só o contexto que permite diferenciar as duas situações.
Blindar consensos morais da possibilidade de contestação é complicado. Gays e outras minorias gozam hoje de direitos porque alguém em algum momento ousou afrontar a moral então vigente.
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