Em um mundo no qual impressões e certezas têm o mesmo peso, diluídos pelo instantâneo pixelizado da comunicação global, de repente parece que todas as desavenças resolveram emergir para serem resolvidas pelo recurso da força.
Em poucas semanas, azeris derrotaram armênios após três décadas, o mais ideológico dos conflitos de repercussão global explodiu com o ataque terrorista do Hamas a Israel, a Rússia afundou a contraofensiva de Kiev no seu atoleiro ucraniano.
Tem muito mais: os protagonistas EUA e China seguem a se estranhar nos mares, o caldeirão coreano segue em fervura alta, o conflito do Sudão ressurgiu e até uma disputa por petróleo resolveu dar o ar da graça entre Venezuela e Guiana.
Por óbvio, é assim desde que uma pedra foi jogada contra o vizinho de árvore. Até mesmo a geografia muda pouco.
O Sudão abriga indícios mais antigos conhecidos de conflito, 13,4 mil anos atrás, e a primeira batalha registrada ocorreu em 1457 a.C. no vale de Meggido, hoje em Israel —e, para quem acredita nisso, será palco da última, já que na escatologia cristã a região atende pelo nome grego de Armagedon.
O que nos turva a visão é a velocidade. Ela deriva do encurtamento de distâncias que a tecnologia proporcionou, seja no monitoramento em tempo real do campo de batalha por drones ucranianos e russos, seja pelas versões divergentes acerca de autoria de ataques a Gaza. Tudo demanda fusão de dados nem sempre coerentes.
Mas tal entropia política é também um estágio natural. Ela ocorre quando o arcabouço de governança global está em transição, o que no caso atual é um processo que vem do fim da Guerra Fria, em 1991, que já teve terror, guerra, crise financeira e até uma pandemia. Atores buscam seu espaço no palco, e cotoveladas são a regra.
A hegemonia americana não firmou-se como norte. A China ascendeu como potência desafiante primeiro pela economia, depois pela política, a Rússia tornou o ressentimento uma arma e ressuscitou métodos da década de 1930.
A ONU nunca passou de uma boa ideia, salvo em raros momentos, mas sua inutilidade vem sendo reiterada de crise em crise, do Iraque à Ucrânia e, agora, o Oriente Médio.
Opaca, silenciosa e distante de projetar poder como só os americanos conseguem de forma convencional, a China observa tudo enquanto vive seus próprios dramas. Como a Igreja Católica, Pequim gosta da perspectiva da longevidade para analisar e reagir, enquanto os EUA são filhos da reforma protestante, da celeridade industrial e do Iluminismo.
Ao longo da história, potências estabelecidas e desafiantes se alternaram na vitória. Não se sabe que mundo sucederá o atual, mas uma coisa é líquida: não será um parto indolor.
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