Se a galopante epidemia do coronavírus de Wuhan provar-se contornável como suas antecessoras mais recentes e o plano de paz anunciado por Donald Trump para o nó israelo-palestino acabar sendo mesmo apenas mais uma etapa do impasse na região, talvez o 28 de janeiro venha à memória no futuro por outro motivo.
Foi o dia em que o Reino Unido de, imagine quem, Boris Johnson, abriu a porteira para o Ocidente rejeitar a tutela americana quando o assunto é a revolução do 5G.
A nova geração da comunicação móvel promete velocidades muito superiores às atuais do 4G e interconectar de geladeiras a automóveis, para não falar em caças, drones e tanques nas guerras do futuro.
Ela está no centro tecnológico do maior embate geopolítico e econômico do século 21, entre EUA e China. É uma crise com lances agudos, ainda que pontuada por tréguas como a recentemente anunciada.
Resumindo a história, os EUA foram os reis do 4G. Não por acaso, são americanas as maiores beneficiárias da constelação de empresas abertas a partir da popularização dessa tecnologia: Facebook, Netflix etc.
Agora, a China, com a gigante Huawei à frente, oferta o que há de melhor e mais barato no 5G até aqui para empresas e governos.
Como Pequim é capital de uma ditadura comunista cada vez mais totalitária no controle de informações, há uma preocupação mais do que genuína em saber se é o caso de implantar no seu país redes que podem servir como conduíte de dados para sabe-se lá quem na outra ponta.
Os chineses dizem que isso é bobagem, já que tal vazamento seria facilmente identificável, algo que nem todo mundo compra. Jogando com a dúvida, os EUA iniciaram uma campanha poderosa para que seus aliados no mundo ocidental optem por tecnologia americana —ou, pelo menos, europeia.
A Rússia, adversária existencial de um Ocidente ainda com sequelas da Guerra Fria, fez a opção óbvia pelo 5G chinês, o que não ajudou muito a defesa de Pequim.
Países como Japão e Austrália, até por estarem na zona direta de influência geopolítica chinesa, fecharam com Trump e vetaram a Huawei em suas redes. Há dezenas de países que irão ter de fazer suas escolhas em breve, e Londres parece ter achado uma solução inteligente.
Permitiu aos chineses a presença, com um limite máximo de 35% de presença no mercado e vetando o que chama de “fornecedores de alto risco” —ou seja, a Huawei— de equipar instalações sensíveis, como instalações nucleares.
Com isso, pretende um ecossistema sem monopólio, aberto a um “mix” de empresas estrangeiras.
O Brasil está, para variar, atrasado na discussão. Por problemas supostamente técnicos, o leilão de frequências previsto para este ano só deve ocorrer em 2021, com a introdução de projetos pilotos talvez em 2022.
O ritmo quelônio, por outro lado, tem um lado bom: permitir que o governo Bolsonaro possa estudar a solução britânica em detalhe e ver como aplicar algo semelhante por aqui para contornar a pressão do aliado preferencial do presidente.
Até aqui, os testes feitos no país não vetaram a Huawei, mas o conhecido amor do presidente por tudo que venha de Trump leva à suspeita de que critérios ideológicos possam ser prevalentes —Bolsonaro até aqui vive um "bromance" sem muita reciprocidade com o americano.
Com o modelo britânico à disposição, espera-se que a versão pragmática do americanófilo do Planalto, vista em viagem à própria China em 2019 ou à Índia agora (por sinal, o parceiro do bloco Brics também ignorou Trump no assunto), se imponha.
Em janeiro de 2004, escrevi um artigo na página 2 da Folha sob o título “Lula e a imprensa”. Nele, criticava o ensaio de escalada autoritária do presidente então ainda no seu primeiro ano em relação ao jornalismo.
“Lula tem todas as credenciais democráticas que sua trajetória até aqui o facultou, mas não demonstra saber lidar com a mídia mais independente”, dizia o texto.
O tempo passa. A recente entrevista em que Lula fala barbaridades e ainda equipara-se a Bolsonaro ao defender como o atual inquilino do Planalto lida com a imprensa mostra que as tais credenciais democráticas viraram adereço —e que o petista sabe bem que tem público a disputar com seu antípoda.
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