Ilona Szabó de Carvalho

Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

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Ilona Szabó de Carvalho

A brutalidade do Brasil

A violência sexual na infância é silenciosa

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Parem e reflitam. O que os números a seguir dizem sobre nossa sociedade, Sistema de Justiça e o Estado brasileiro?

Quatro meninas de até 13 anos são estupradas por hora no Brasil. De 1994 a 2018, foram 655.836 nascidos vivos, cerca de 26 mil partos de meninas entre 10 e 14 por ano —crianças parindo crianças. E o pior é que esses números são somente a ponta do iceberg —a violência sexual, por motivos que vão desde a vergonha, até a ameaça, é muito subnotificada.

Até os 14 anos, a lei diz que qualquer gravidez é fruto de estupro, e garante que a interrupção da gestação seja feita legalmente em hospitais públicos. Cerca de seis abortos em meninas vítimas de estupro são realizados diariamente no Brasil. O que reflete um número muito menor do que os casos de violência cometidos. Isso nos diz que para muitas meninas o direito de interromper a gravidez lhes é negado, em muitas ocasiões nem sequer cogitado, o que em inúmeros casos coloca em risco as suas vidas, e em todos eles, no mínimo, lhes rouba a infância. Para não falar dos traumas resultantes do abuso sexual.

Até a pandemia, 76 hospitais faziam o aborto legal no país. No momento são só 42, e boa parte dos seus funcionários têm desconhecimento sobre o assunto. Somente 13 dos 27 estados têm o procedimento. E isso no país onde a violência sexual é o segundo tipo de violência mais registrado. Só em 2018, foram 66.041 registros de violência sexual, cerca de 180 estupros por dia. E como nos mostram as estatísticas, são as crianças as principais vítimas desse tipo de violência, representando 56,5%. Segundo a plataforma EVA, 88,3% das vítimas desse crime são as mulheres e meninas, em especial as negras (53,4%).

A violência sexual na infância é silenciosa. Diferentemente do que se assume, não são desconhecidos os principais perpetradores. Na verdade, esses configuram o menor grupo para esta faixa etária, 23%. Seus algozes são justamente aqueles que deveriam protegê-las. São conhecidos, padrastos, tios, pais, irmãos, primos, amigos da família, totalizando 65% dos casos. Acontecem no interior de seus lares, o local em que deveriam se sentir mais protegidos.

O que esperar de um país que não protege suas crianças e não respeita suas mulheres?

A violência sexual é reflexo da brutalidade de um país que ainda acha que mulheres são propriedades de homens. É reflexo de uma sociedade que ainda desconsidera a violação dos corpos de mulheres, onde a masculinidade, virilidade e brutalidade são sinônimos. Um país retrógrado onde a luta pela igualdade de gênero é vista como bandeira ideológica, e não uma questão humanitária central para o desenvolvimento da nação.

É reflexo também de um Sistema de Justiça negligente com o seu dever de fazer cumprir a lei. E, obviamente, de um Estado que não cumpre sua mais vital obrigação —proteger seus cidadãos, em especial suas crianças.

Temos o arcabouço legal de proteção da infância, mas sua implementação integral nunca foi priorizada. Nosso país prefere culpar as crianças vitimadas no lugar de lutar pela plena aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente e melhorar nossa rede de proteção social. Meninas e mulheres pagam o preço de escolhas equivocadas, covardes e egoístas.

Agora, os problemas que escondemos debaixo do tapete estão escancarados, ninguém mais pode dizer que não os vê. Ninguém pode dormir com a consciência tranquila. Pergunte-se então o que pode fazer para mudar essa situação e faça. Não espere pelo desgoverno de plantão. Lá os brutos imperam e tentam negar todos os avanços que muitas e muitos antes de nós lutaram para ver.

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