Isabelle Moreira Lima

Jornalista especializada em vinhos, editora executiva da revista Gama e autora da newsletter Saca Essa Rolha

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Isabelle Moreira Lima

A malbec chega aos 100

Pesquisa científica e preservação de identidade levam o vinho argentino à pontuação máxima da crítica

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Sabe a história do ABC? Nos Estados Unidos, a sigla era usada para responder sobre o que se queria beber, "anything but chardonnay" (qualquer coisa menos chardonnay).

Depois foi a vez da malbec: a uva ficou tão popular ao redor do mundo que logo virou motivo de piada. De tão difundida, virou quase commodity, ficou padronizada e flácida, com a acidez lá embaixo e o corpo lá em cima. Mas, ao mesmo tempo que o mercado foi inundado com versões sem graça dessa uva que é tão querida por aqui, tem gente trabalhando para virar o jogo.

Detalhe de algumas garrafas de vinhos - Vignola, Ayrton/TBA/FOLHA DE S.PAULO

A ideia é se apropriar do que é comum no chamado Velho Mundo (a Europa) e vender o lugar em vez da uva, como é comum no Novo Mundo (Américas, África, Oceania). Assim, uma vez que a malbec é a estrela inquestionável da Argentina, melhor mesmo é vender as diferenças de terroir (solo, clima, altitude, exposição solar e práticas de cultivo).

Produtores da região de Vale de Uco, no sudoeste de Mendoza, na Argentina, adotaram a ideia francesa de crus, termo usado para indicar um grupo de vinhedos de alta qualidade, e hoje fazem grandes vinhos. É possível ver nas safras recentes da bebida, feita aos pés da cordilheira dos Andes, os efeitos do manejo cuidadoso e pensado a partir de diferenças de composição em cada pedaço de terra. Isso porque, em meados dos anos 2000, pesquisas científicas escanearam partes da região para decidir como seriam plantadas essas vinhas especiais.

Pode-se dizer que três vinícolas lideraram esse caminho, com duas abordagens diferentes: a família Catena Zapata apostou na altitude e sobe cada vez mais alto para fazer seus melhores vinhos; e os Zuccardi e a Alto Las Hormigas cavaram buracos fundos para entender o solo e criar novos desenhos de vinhedos.

Se Catena e Zuccardi já têm impressionado o mundo com seus vinhos de 100 pontos, como o Catena Zapata Adrianna Vineyard Mundus Bacillus Terrae 2021 (Mistral) e o Zuccardi Vale de Uco Finca Piedra Infinita Supercal 2021 (Grand Cru), ambos no Guia Descorchados 2024, chegou a vez de a Alto Las Hormigas comemorar o reconhecimento do Jardín de Hormigas Los Amantes Malbec 2021 (World Wine).

O vinho, que é puro, cristalino e complexo com boa fruta madura, floral e grafite, chegou à pontuação máxima, segundo o crítico inglês e master of wine Tim Atkin.

Agora, imagino que você esteja pensando: pontuações são polêmicas, críticos podem ter um gosto pessoal muito específico, será que dá para levar mesmo em conta esse reconhecimento?

A história do Alto Las Hormigas responde um pouco da questão. A vinícola foi criada pelo renomado enólogo italiano Alberto Antonini, que trabalha hoje em dez países como consultor (ajudou a desenvolver os vinhos da Garzón, no Uruguai, por exemplo), além de fazer vinho também no quintal da propriedade que herdou do pai, a Poggiotondo.

Antonini chegou há 29 anos na Argentina, já tendo deixado sua marca em vinícolas como Frescobaldi e Antinori, nas quais foi enólogo-chefe, a convite de um amigo também italiano, o engenheiro elétrico Antonio Morescalchi, que gostaria de fazer um grande vinho. Quando Antonini chegou ao Vale de Uco em 1995 e encontrou uma "Itália que falava castellano", com vinícolas familiares, de pequenos produtores, distante do esquema industrial que já existia no Chile, teve uma "sensação positiva".

Visionários, os dois italianos decidiram apostar todas as fichas na malbec. Com a nova parceria do especialista em solos chileno Pedro Parra, começaram o estudo de solo que marcou época no país. Fizeram um raio-x de seus hectares e recortaram a terra, cavando as "calicatas", buracos profundos que possibilitaram ver cada camada de solo. Foi ali que entenderam as diferenças e começaram a transpor a lógica dos crus para o Novo Mundo. "A Europa sempre vendeu o lugar, mas no Novo Mundo era mais difícil, porque os lugares não eram conhecidos", contou em entrevista em visita a São Paulo para divulgar seus vinhos.

O capítulo mais recente dessa história foi escrito em 2017 e segue a linha do resgate de métodos tradicionais. Antonini me conta que dá muito mais trabalho ser menos intervencionista na produção do vinho porque é preciso estar mais atento a tudo. E por isso mesmo, talvez, ele se veja mais como um "fazedor de vinho" do que como enólogo. De todo modo, foi com isso na cabeça que a vinícola fundou seu Jardín de Hormigas, em Paraje Altamira, seção do Vale de Uco, um vinhedo plantado em 2017 depois da investigação de Parra e com 40% de cobertura de flora nativa, mantendo a biodiversidade do lugar. A ideia é seguir os preceitos da "viticultura holistica", que diz que cada pedaço de terra é único.


Vai uma taça?

Se os vinhos de cem pontos não são para qualquer bolso, a boa notícia é que há rótulos de entrada pagáveis do Alto Las Hormigas, como o Malbec La Danza (World Wine, R$ 78), que é fresco, alegre e redondinho, perfeito para abrir o churrasco, e o Malbec Clássico (R$ 124), que traz a típica violeta e pode acompanhar a carne principal no mesmo evento. Dos Zuccardi, há muita coisa no mercado brasileiro e de diferentes regiões de Mendoza. Do Vale de Uco, é irresistível a série Q (Grand Cru, R$ 203). Dos Catena, a linha Saint Felicien é relativamente nova no país e tem o menor preço da vinícola, caso do Saint Felicien Malbec 2021 (Mistral, R$ 180).

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