O estado comatoso das relações russo-americanas, a atravessar incólume as últimas décadas, desponta como um dos maiores percalços do mundo pós-Guerra Fria. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, fortaleceu-se a crença sobre a possibilidade de Washington e Moscou encontrarem um modus vivendi, com contribuições cardinais para a estabilidade global, alicerçadas, por exemplo, na cooperação em temas como desarmamento, ambiente e combate ao terrorismo.
Prevalece, no entanto, a visão de rivalidade entre impérios, alimentada por camadas históricas de desconfiança mútua.
Em 16 de julho, Donald Trump e Vladimir Putin se reunirão na Finlândia, primeiro encontro formal entre eles. Ofusca a iniciativa diplomática robusta lista de contenciosos, como interferência russa na eleição americana de 2016, a guerra da Síria, a crise na Ucrânia e a expansão da União Europeia e da Otan rumo a fronteiras orientais do velho continente, movimento que incomoda Moscou.
Apesar do acúmulo avassalador de diferenças na agenda de curto prazo e dos perfis controversos de seus protagonistas, a reunião de Helsinque passará também por crivo histórico.
Será, para a estabilidade global, grande passo se os dois países conseguirem, finalmente, emitir sinais de recuperação do “espírito de Glassboro”.
A expressão surgiu após encontro entre líderes soviéticos e norte-americanos no auge da Guerra Fria, quando, num momento da década de 1960, buscou-se priorizar a colaboração entre as superpotências, com o objetivo prioritário, à época, de evitar um conflito nuclear.
Em 1967, a Guerra dos Seis Dias, entre Israel e vizinhos árabes, potencializou tensões no cenário global. Washington e Moscou, apoiando lados opostos do conflito no Oriente Médio, temiam ser arrastados para um enfrentamento direto.
A fim de dissipar o fantasma de um embate atômico, a localidade norte-americana de Glassboro hospedou uma reunião de cúpula, convocada às pressas, entre o presidente Lyndon Johnson e o premiê soviético, Alexey Kosyguin.
Agenda desafiadora lançava nuvens cinzentas sobre o convescote diplomático: tensões no Oriente Médio, guerra sangrenta no Vietnã e diálogos intricados sobre desarmamento nuclear.
A primeira reunião de alto escalão entre EUA e URSS desde 1961 não produziu “resultados concretos” ou acordos eloquentes, mas entrou para a história como um momento de convergência entre as superpotências, com o intuito de impedir escalada de atritos e manter, sob certo controle, a rivalidade inerente à Guerra Fria. Nascia o “espírito de Glassboro”.
Bill Clinton e Boris Ieltsin, atores principais nos anos 1990, dividiram piadas em entrevistas coletivas e protagonizaram iniciativas diplomáticas conjuntas. George W. Bush e Putin se aproximaram no pós-11 de Setembro e compartilharam inteligência sobre inimigos comuns. O presidente norte-americano chegou a elogiar o colega russo, ao dizer, após reunião bilateral, ter “visto a alma” do visitante.
Em tempos democratas, a secretária de Estado Hillary Clinton e seu homólogo russo, Serguei Lavrov, posaram para fotógrafos apertando o botão de “reiniciar” nas relações bilaterais. Barack Obama e Dimitri Medvedev comeram hambúrguer em 2010, em Arlington, nos EUA.
Porém, sobrevive a percepção, em Washington e em Moscou, de uma rivalidade supostamente intransponível e a rocha, como no mito de Sísifo, sempre rolou montanha abaixo, após quase atingir o cume. Se Trump e Putin conseguirem, finalmente, apontar um caminho de mais cooperação e menos enfrentamento, será uma vitória do “espírito de Glassboro”.
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