O roteiro repugnante se repete. Hamas e Israel protagonizam mais um episódio sangrento, numa lógica inaceitável e frequente na região: ondas de violência para sabotar processos de paz. A ofensiva deslanchada pelo grupo palestino, além de responsável por trágicas mortes e inaceitável destruição nos dois lados do conflito, carrega um objetivo geopolítico, que é minar os Acordos de Abraão, o mais relevante avanço pacificador do Oriente Médio em décadas.
Em 2020, num ato histórico, quatro países árabes (Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão) reconheceram o direito à existência de Israel. Nações como Egito, em 1979, e Jordânia, em 1994, haviam abandonado o “rejeicionismo”, estratégia ilustrada pela recusa à resolução 181, aprovada pelas Nações Unidas para a partilha da Palestina.
Foi em 1947 que a ONU deu contornos concretos à ideia de dois Estados, um judeu e outro árabe, lado a lado. E, apesar dos primórdios da rivalidade da Guerra Fria, EUA e URSS votaram da mesma maneira, a favor da vitoriosa resolução 181.
Países árabes rejeitaram a decisão da ONU e optaram pela guerra, em 1948, para impedir a independência de Israel. Venceram o conflito os israelenses, apoiados em armas compradas na então Tchecoslováquia.
Tais fatos históricos já foram ofuscados por narrativas ideológicas mais recentes. Interessante ressaltar a reviravolta da posição soviética. O Kremlin flertava com o socialismo de Israel do pós-independência e queria expandir influência no Oriente Médio.
Mas, em meados dos anos 1950, enfrentou um dilema. Chegava então ao poder no Cairo um militar “terceiro-mundista” chamado Gamal Abdel Nasser. A URSS tinha, portanto, de optar entre os arqui-inimigos Israel e Egito. O cálculo geopolítico levou os soviéticos à aliança com o país líder do mundo árabe e a se afastar definitivamente dos israelenses.
Anuar Sadat, sucessor de Nasser, também promoveu guinada diplomática. O Cairo, nos anos 1970, abandonou Moscou, se aproximou de Washington e assinou pioneiro acordo de paz com Israel.
Em 1981, Sadat foi assassinado por terroristas contrários à pacificação. O presidente egípcio deixou relevante legado, ao optar pela convivência com um ex-inimigo.
No cenário atual do século 21, a crença na coexistência ganhou novo impulso, apesar das crises e das guerras em décadas passadas. Lideranças árabes, pressionadas pelo redesenho da geopolítica e da economia internacional, passaram a rever a relação com Israel.
A transformação do inimigo em parceiro se deve a três fatores. Primeiro, o mundo pós-petróleo. Com a queda inevitável de importância do produto, nações árabes buscam diversificar suas economias, apostando, por exemplo, em inovações tecnológicas e setor de serviços.
Segundo: diminuição da presença norte-americana no Oriente Médio. A região perdeu para a China, desde a era Obama, a condição de prioridade da política externa dos EUA. Terceiro: a rivalidade histórica de países árabes sunitas, como Arábia Saudita e Egito, com o Irã, majoritariamente persa e xiita.
Portanto, dirigentes árabes enxergam em Israel um parceiro para ajudar a diversificar modelos econômicos e para construir aliança contra Teerã, no cenário de menor envolvimento dos EUA no Oriente Médio. Entram em cena os Acordos de Abraão.
O Hamas, com sua ideologia extremista, vai se isolando e rejeita o avanço de tratados baseados na ideia da coexistência. Explica-se, portanto, a lógica para deslanchar a ofensiva agora, sete anos depois de sua última guerra com Israel.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.