Joanna Moura

É publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade

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Quem salva a mocinha no final da história são as amigas, não o príncipe

Como nos relacionaríamos na ausência de um patriarcado nos moldando à ideia de uma incompletude somente solucionada pelo amor romântico?

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"Demorei para comprar o seu livro..."

Dizia a mensagem que recebi numa terça-feira de dezembro.

"...Mas ainda bem que não desisti. Para além de ter me divertido, fiquei feliz com a lembrança da nossa amizade. Feliz e também nostálgica, com pena de termos nos distanciado, sem entender as causas que levaram a isso, mas respeitando os nossos momentos da época."

Antes mesmo de terminar de ler, senti o coração espremer dentro do peito, como uma toalha torcida fazendo escorrer água pelas pontas. Água que, por sua vez, foi imediatamente marejar os olhos, tornando turvas as letras na tela do telefone.

Lu e eu tínhamos apenas sete anos quando nos conhecemos. Eu não sei dizer como foi, quem falou com quem, quem puxou quem pra brincar primeiro. A memória infantil tem dessas coisas, de escrever dentro da gente histórias numa língua própria que depois que o tempo passa não conseguimos traduzir. Só sei dizer que dos sete aos 12 anos não tem memória minha da qual Lu não faça parte.

Foto foca o pulso de três meninas brancas e usam pulseiras coloridas
Amigas usam pulseiras com nomes das músicas e dos álbuns de Taylor Swift, em show da cantora no Rio de Janeiro, em novembro - Aléxia Sousa/Folhapress

Lu foi meu primeiro exercício consciente e voluntário de amizade, a primeira que foi escolhida por mim (e por ela) e não pela ocasião ou pelo acaso. Nos unimos porque quisemos e provavelmente porque vimos uma na outra coisas que víamos (ou não) em nós mesmas, num encaixe tão perfeito que, uma vez encaixado, era quase impossível de desencaixar. E então rapidamente nos tornamos simbióticas, melhores amigas do mundo naquela época exata da vida em que nada nem ninguém no mundo é mais importante.

E por todo esse tempo eu mantive guardada essa nossa história em alguma gaveta dentro de mim que eu não costumo mexer. Mas a mensagem daquela terça-feira arrancou a gaveta com força e a deixou escancarada no chão, dando play a uma sequência de imagens que eu não acessava fazia tempo. Das tardes tomando sol e clareando o cabelo com água oxigenada, da textura do pêlo dos seus cachorros, do cheiro de jaca que entrava pela casa de boneca no jardim do sítio, das tardes vendo "Velocidade Máxima" na televisão, das conversas no quarto escuro antes de dormir.

Adentramos de mãos dadas a pré-adolescência, deitadas no chão do quarto dela, escrevendo rolos enormes de cartas de amor para meninos cujas bocas nunca beijamos e cujos nomes nem me lembro mais, meros coadjuvantes do amor tão maior que tínhamos uma pela outra. Até que tudo mudou.

Lu cresceu primeiro. Virou a menina que os meninos olhavam e eu, que era a mais alta de nós duas, passei a me sentir pequena ao seu lado. Naquela fase da vida em que a gente só quer ser igual a todo mundo, senti que tínhamos nos tornado diferentes rápido demais e eu não soube lidar. No drama maniqueísta da adolescência nunca chegamos a nos tornar rivais, mas nos vi competindo num torneio que você nem fazia questão de participar e que eu não tinha nem chance de ganhar. E me dói dizer que foi aí que eu soltei a sua mão, Lu.

Outro dia me deparei com um texto da psicanalista Ingrid Gerolimich que nos convida a imaginar um mundo em que damos o mesmo valor dos relacionamentos amorosos à amizade entre mulheres. Em que ensinamos meninas, desde cedo, que, como disse Preta Gil em uma entrevista recente, "quem salva a mocinha no final da história são as amigas, e não o príncipe". E a pergunta que fica é: como nos relacionaríamos umas com as outras na ausência de um patriarcado nos moldando à ideia de uma incompletude somente solucionada pelo amor romântico?

Talvez, nesse mundo, nossa amizade tivesse tido uma chance. Talvez ainda tenha.

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